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Cristina Presidente: Primeiro estranha-se, depois sintoniza-se

A apresentadora de televisão Cristina Ferreira formulou a hipótese de vir a ser candidata à Presidência da República. Ato de mera publicidade, devaneio de diva que perdeu contacto com o planeta terra ou simples manifestação de cidadania? Eduardo Cintra Torres e António Costa Pinto esmiúçam a possibilidade que, a acontecer, seria apenas mais um exemplo de uma tantas vezes repetida transferência dos palcos mediáticos para os igualmente pouco perenes palcos da política pura e dura.
22 Janeiro 2020, 09h30

Estados Unidos, Itália, Ucrânia, Brasil, Libéria, Haiti, Filipinas. A geografia dos países onde estrelas da televisão – entre cantores, atores, comediantes, músicos, apresentadores e palhaços, muitos palhaços – tentaram, e por vezes conseguiram, a transferência para os palcos por vezes mais sérios da política, é extensa e ao mesmo tempo variada em termos de qualidade da envolvente democrática e categoria económica associada.

Não se fala aqui, como é evidente, de intervenção política – área onde convergem, por exemplo, Pedro Abrunhosa e Bob Dylan (com perdão dos puristas) – mas de verdadeira transferência de um palco para o outro, tendo tudo isto a ver com o facto de uma apresentadora de televisão portuguesa, Cristina Ferreira, ter afirmado, com a eficácia dos shares televisivos e a inocência estampada no rosto, que podia muito bem, um dia destes, vir a cumprir o destino (por si escolhido se for caso disso) de candidatar-se à Presidência da República.

“Porque não? Está no seu direito”, disse o especialista em média e professor universitário Eduardo Cintra Torres quando instado a comentar o caso – inscrito num quadro de largo espetro em termos de reações: entre os que manifestaram escândalo pela mera possibilidade e os que fizeram votos para que nela possam votar já em 2021, houve reações para todos os gostos e feitios e ninguém conseguiu ficar indiferente. Nem o JE. Bom, quase ninguém: Manuel Falcão, também especialista em média e também professor universitário, disse que “não comento semelhante assunto, é um fait divers, não me interessa, não tem a ver com média nem com bom-senso” – o que é também uma eficaz forma de comentar, com o devido pedido de desculpas.

É possível
Pragmático, Cintra Torres afirma considerar “possível” que Cristina Ferreira venha mesmo a avançar para uma candidatura à Presidência da República. Pela mais prosaica das razões: “É possível porque ela disse que o faria; é uma pessoa inteligente, muito aguerrida na sua vida profissional, muito trabalhadora e, portanto, é mesmo possível, pelo menos para ela, essa hipótese. Não é de descartar essa possibilidade”.

Mas uma coisa é avançar com uma candidatura, outra é ter um mínimo de expressão. O exemplo das presidenciais de 2016 – de repente ‘inundadas’ por uma democracia que deixou de reverenciar com uma espécie de ‘parolismo ancien regime’ o magistério mais alto da Nação – é bem eloquente: 22 portugueses ameaçaram avançar com a candidatura e depois apenas dez, mesmo assim uma verdadeira enchente, ultrapassaram a ameaça e chegaram a vias de facto. A esmagadora maioria – isto é, todos menos um – pouco contou para aquele campeonato, mesmo aquele jovem que não vinha dos palcos mas da própria calçada onde os palcos costumam apoiar-se, mas valeram pelas selfies que obrigaram Marcelo Rebelo de Sousa a tirar com eles, uma espécie de warm up para a Presidência propriamente dita.

Surpreendentemente, Cintra Torres diz-se convencido que, “se fosse agora” – num momento em que Cristina Ferreira é uma espécie de irmã (ou mãe, ou namorada, ou melhor amiga, ou fada madrinha, ou mulher ideal ou uma espécie de Nossa Senhora dos Milagres) de quase todos nós – “seria uma candidatura que recolheria algum apoio”. A questão é, claro, se seria o suficiente: “Posso gostar muito da Cristina apresentadora e achar que ela não seria uma boa Presidente”. Tanto mais que, na ânsia de equilíbrio e de agradar ao maior número possível de pessoas que acham que ver televisão vale a pena – o que é a essência do tipo de programas em que a potencial ‘Presidenta’ está envolvida – Cristina Ferreira nunca cometeu o deslize de emitir uma opinião que pudesse soar mesmo que longinquamente a um comprometimento político e muito menos ideológico.

Além de isso não ser verdade, corrige Eduardo Cintra Torres – numa circunstância qualquer “disse que nunca convidaria André Ventura, deputado do Chega, para um programa seu, apesar de convidar os representantes de todos os outros partidos”, fica feito o reparo – o professor universitário acha que, a ser um problema, do que parece duvidar, “isso é coisa que se resolve em 15 dias”. “Voltando ao exemplo florido das presidenciais de 2016, talvez seja difícil catalogar político-ideologicamente Jorge Sequeira, psicólogo, ou Vitorino Silva, calceteiro, ambos presentes para possível escolha e futuro compromisso nos boletins de voto apresentados aos portugueses.

Não é impossível
Depois de um silêncio audível – como que querendo dizer “de certeza que é esse o tema que queres abordar?” – o politólogo António Costa Pinto remeteu a declaração de Cristina Ferreira para o caixote do marketing daquela “que é talvez a estrela número um” desse outro caixote, a televisão. Mas ressalvou: “No entanto, ela pode sempre decidir fazê-lo, na perspetiva do aumento do seu capital”.

“Mas teria um grande problema: teria de se posicionar” – voltamos ao campo político-ideológico logo a abrir, que é para aprendermos a não perder o foco – “e isso iria representar o fim da sua carreira”, num lugar onde é rainha e, bem vistas as coisas, talvez valha mais a pena ser rainha toda a vida do que Presidente da República por cinco ou dez anos. Sendo assim, “numa escolha racional, Cristina Ferreira não será candidata à Presidência da República”.

Mas voltemos à questão do elevado grau de ‘apoliticidade’ de Cristina Ferreira – afinal, por esse mundo fora, vários antigos comediantes e entretainers singraram com destreza no vasto, sombrio mas apesar de tudo enormemente democrático mundo da política. “As eleições diretas para a Presidência têm justamente grandes vantagens para este tipo de empresários, digamos assim, da política. Em primeiro lugar porque são campanhas altamente personalizadas; e em segundo porque, apesar de terem apoios partidários à direita ou à esquerda, as candidaturas acabam por ser transversais”.

O analista e professor universitário recorda, por outro lado, que a candidatura presidencial pode ser também “uma plataforma para futuras carreiras políticas” e dá o exemplo de Marinho Pinto, que saltou de uma para outra plataforma antes de aterrar, mais recentemente, em lado nenhum. E lembra ainda outro: Fernando Nobre, entretanto trucidado pela implacabilidade das máquinas partidárias, que dele extraíram o que quiseram até chegar a hora de dele se verem livres. “Independentes e empresários políticos individuais encontram neste tipo de eleições rampas para futuras carreiras políticas, independentemente de as ganharem”, confirma.

Costa Pinto recorda ainda que uma candidatura com base numa personalidade muito conhecida no palco mediático – o que não acontecia com nove dos dez candidatos às presidenciais de 2016 – pode ser um perverso agente de mudança da envolvente política, “retirando a possibilidade de alguém ganhar à primeira volta ou atirando para fora de uma segunda volta” um candidato com ambições. “É um perigo real” – que, como é evidente, não poderá afetar a figura do atual Presidente (que chegou a telefonar a Cristina Ferreira para lhe dar os parabéns pelo programa) quando ele se apresentar para um segundo mandato.

Os que o fizeram possível
Não é fácil encontrar o percursor destas andanças entre palcos, mas o certo é que tanto Cintra Torres como Costa Pinto começaram a discorrer nomes começando pelo mesmo: Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos entre janeiro de 1981 e janeiro de 1989, vindo diretamente de governador da Califórnia e antes disso presença felizmente não muito assídua em filmes de Hollywood de duvidosa qualidade.

Ambos acabaram também a listagem na mesma personalidade: Volodymyr Zelensky, atual presidente da Ucrânia, que passará para a história não por ser um comediante que se impôs entre a pouco venerável plateia de políticos de carreira do seu país, mas porque quase conseguiu dar cabo da carreira do homólogo norte-americano, Donald Trump – outra criação perversa do tal caixote da televisão.

Aém dos óbvios – o comediante italiano Beppe Grillo, o qualquer coisa brasileiro Tiririca ou o ator norte-americano de origem austríaca Arnold Schwarzenegger – vale a pena recordar algumas personagens que fizeram, com mais ou menos sucesso, essa sempre ansiolítica passagem de um palco para o outro.

A húngara Elena Anna Staller foi uma delas. Possuidora de argumentos que a destacavam do cinzentismo da câmara baixa do parlamento italiano para o qual foi eleita em 1987, depressa ascendeu a um mediatismo que a fez ser recebida, entre muitos outros lugares onde esteve, no Parlamento português a 19 de novembro do mesmo ano. Dois únicos pontos negativos: a presença assídua de um urso de peluche entre as mãos e mau-gosto do nome com que passou para a história: Cicciolina. “Estava o Parlamento em tédio morno/Do Processo Penal a lei moendo/Quando carnal a deputada porno/Entra em S. Bento. Horror! Caso tremendo!”, escreveu sobre ela a inesquecível Natália Correia.

O filipino Joseph Estrada, ator em mais de cem filmes, entrou na política em 1969 como presidente de câmara, tendo depois passado a senador, vice-presidente, e finalmente a presidente das Filipinas, cargo que ocupou entre 1998 e 2001. No Haiti, o cantor popular Michel Martelly, mais conhecido pelo nome artístico Sweet Micky, conquistou a presidência em abril de 2011, com mais de 67% dos votos expressos, sendo apoiado pela estrela mundial do hip-hop Wyclef Jean, ele próprio não tendo concorrido por não reunir as condições necessárias: domicílio fixo no país nos cinco anos anteriores. Na Libéria, Georges Weah, um dos maiores astros do futebol europeu, foi o candidato derrotado às presidenciais de 2005, perdendo para Ellen Johnson Sirleaf, presidente do país até 2018.

Pode ser que seja possível
De fora desta lista ficam, como está visto, aqueles que se socorreram do caixote televisivo para chegarem aos altos cargos que ocupam – sem com isso se desmerecer outros atributos que lhe sejam, ou possam ser, reconhecidos. Além do já referido Donald Trump e do inesquecível italiano Sílvio Berlusconi, também o atual Chefe de Estado português, Marcelo Rebelo de Sousa entra por mérito próprio nesta galeria mais particular, como estará por certo também o próximo Presidente, seja quem for: o certo é que, por esta altura, será com toda a certeza comentador político numa das milhentas televisões que alimentam a vontade portuguesa de as ver, ainda que estas quase nada dêem em troca.

Por isso, e sendo certo (ao que se sabe) que Cristina Ferreira está na posse de todas as capacidades necessárias para ser candidata presidencial em 2021 e as eleições seguintes, resta aos portugueses fazerem figas para que acabe mesmo por decidir-se a concorrer – afinal, é sempre bom ter na Presidência da República alguém que aparece cá em casa todos os dias!

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