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Crónica de um sufoco fiscal

O aumento da carga tributária nos últimos anos teve efeitos no mercado de trabalho. Há menos profissionais disponíveis para acumular atividades e fazer trabalho suplementar.
  • Clemens Bilan/Reuters
1 Julho 2018, 20h00

Ao receber a nota de liquidação de IRS depois de um ano em que acumulou três empregos em simultâneo para antecipar a amortização do empréstimo da casa, o sentimento de choque apoderou-se de Gonçalo Corceiro. Militar contratado pelo Exército, as noites sem dormir para ter um part-time como vigilante noturno e as refeições que ficaram por tomar para ainda trabalhar num call center não tinham sido suficientes. A Autoridade Tributária (AT) exigia mais.

A carta tinha a habitual assertividade das notificações da AT: faltava ao contribuinte pagar 3.529,58 euros. Já tinha tido de pagar acertos de IRS com o Fisco – a acumulação de trabalhos tinha começado anos antes –, mas o montante solicitado daquela vez indignou-o. Teria de entregar o equivalente a tudo o que tinha recebido de um dos empregos a tempo parcial.

Como o IRS é progressivo e as medidas fiscais tomadas durante os anos de crise levaram a um aumento generalizado da carga tributária, com particular incidência nos rendimentos mais elevados, os descontos que Gonçalo tinha feito ao longo do ano não tinham sido suficientes. Ao acumular três empregos, o rendimento global desse ano punha-o num patamar mais alto de tributação.

“Sinto-me ainda muito injustiçado. Embora tenha uma boa vida, continuo com alguma revolta, porque no fundo sinto-me a formiga no meio das cigarras”, lamenta hoje Gonçalo, que entretanto abrandou o ritmo. O contrato com a tropa acabou e é agora técnico superior na Direção-Geral das Artes – sem outras ocupações em paralelo, porque o ressentimento persiste.

Ainda contestou o Fisco – primeiro através de reclamações graciosas, depois com recurso aos tribunais –, mas todas as tentativas foram infrutíferas. Além de questões processuais levantadas por quem analisava o caso, havia sempre uma impossibilidade de fundo: a lei tinha sido cumprida. “Na liquidação do IRS terá sido aplicado o normativo legal existente”, lê-se na última decisão desfavorável que Gonçalo recebeu, já este ano, enviada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.

O problema é que a lei não está feita a pensar em quem acumula mais do que uma atividade, sobretudo em tempos de crise e de subidas de impostos. Os descontos de IRS foram insuficientes porque a retenção na fonte de cada entidade patronal apenas tem em conta o que essa mesma entidade paga, e não o rendimento global acumulado. Quando chega o momento de o contribuinte entregar a declaração de IRS, o mais provável é sentir nessa altura todo o peso da carga fiscal, com o acerto.

Para a fiscalista Anabela Silva, da consultora EY, impor às entidades patronais a obrigação de atenderem também às remunerações pagas por outras empresas iria tornar o sistema “demasiado complexo e burocrático”. Segundo explicou ao Jornal Económico esta especialista em tributação sobre o trabalho, a legislação permite que os contribuintes possam solicitar à entidade empregadora a aplicação de uma taxa de retenção de IRS mais elevada do que a lei impõe, o que faria aliviar o acerto de contas anual.

Mas é uma evidência que há um desconhecimento generalizado dessa possibilidade, como mostra o caso extremo de Gonçalo. “Esta situação pode suceder com sujeitos passivos que aufiram rendimentos de várias entidades que sejam sujeitos a taxas progressivas”, admite a fiscalista.

Efeitos no mercado de trabalho

O antigo militar sentiu de uma só vez o “enorme” aumento de impostos que o programa de assistência financeira trouxe a Portugal. O início da contestação legal às liquidações do IRS começou precisamente em 2012,  quando a crise atingiu o seu pico e se intensificou a introdução de uma vasta panóplia de medidas que viria a marcar os anos do programa: menos deduções de IRS, menos escalões, taxas mais altas, sobretaxa. Depois da saída da troika e com a mudança de Governo, várias medidas foram entretanto revertidas, mas o nível de arrecadação de impostos continua acima do que estava há uma década, com menos população empregada. A carga fiscal e contributiva total atingiu um recorde de 34,7% do PIB no ano passado.

Embora a carga fiscal seja um tópico recorrente de confronto entre Governo e Oposição, pouca atenção tem sido dada ao efeito que as alterações no IRS tiveram no funcionamento do mercado laboral, em particular enquanto fonte de desencorajamento do trabalho. Mas há sinais de que a procura de atividades secundárias e a aceitação de horas extraordinárias foram afetadas.

Os cálculos do Jornal Económico com base em dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que o caso de Gonçalo Corceiro está longe de ser único: à medida que a carga fiscal subiu nos últimos anos, diminuiu o peso dos trabalhadores com mais do que um emprego.

Segundo o organismo de estatística, havia no ano passado cerca de 196 mil pessoas em Portugal com uma atividade secundária, além do emprego principal. Isto significa que 4,3% da população empregada no país tem um segundo trabalho, o valor mais baixo das últimas duas décadas, segundo os cálculos efetuados. A descida mais abrupta neste indicador deu-se a partir de 2008, com o início da crise. Mas mesmo com a recuperação recente do mercado de trabalho, a tendência de queda continuou a verificar-se, o que sugere alguma ligação à carga fiscal.

A nível de recrutamento, as consultoras de recursos humanos contactadas pelo Jornal Económico não têm sentido que a carga fiscal esteja a desencorajar a aceitação de mudanças para novas oportunidades. Mas confirmam que, no que toca à acumulação de atividades e à realização de trabalho suplementar no mesmo emprego, os impostos são um dos fatores que os trabalhadores põem na balança. “É especificamente nestas situações que os colaboradores têm uma maior atenção ao rendimento líquido em detrimento do rendimento bruto, levando-os muitas vezes à recusa de ofertas profissionais ou de realização de trabalho suplementar nas atuais profissões”, indica Vânia Borges, responsável de Recursos Humanos na Adecco, uma das principais empresas de recrutamento no país.

Para Gonçalo Corceiro, os dias mais intensos de vários empregos já pertencem ao passado. Mesmo quem chegou a ser acusado pela família de ser viciado em trabalho atingiu o limite. “O que me aconteceu continua e continuará muito presente na minha vida. Afasto por completo a possibilidade de vir a trabalhar como dantes”.

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