O caso que começou por envolver um possível conflito de interesses a reboque da lei dos solos passou para outro nível quando se tornou conhecida a avença da Solverde paga à empresa detida pela mulher e filhos do primeiro-ministro. Recorde aqui a fita do tempo da polémica que está na origem da crise política que fez cair o Governo menos de um ano depois de ter tomado posse.
15 de fevereiro
O Correio da Manhã noticia que a mulher e os filhos do primeiro-ministro são sócios de uma “empresa de compra e venda de imóveis”, a Spinumviva, empresa criada por Montenegro. E embora Montenegro tivesse passado a sua participação na empresa para os seus familiares, na realidade, por ser casada em comunhão de adquiridos, continuaria a ter uma participação na Spinumviva, podendo, desse modo, vir a beneficiar da lei dos solos. Ao jornal, Montenegro responde ser “um absurdo” um suposto conflito de interesses e assegura que a empresa familiar só prestou “consultoria no âmbito da proteção de dados pessoais”. Diz também “que nunca foi, não é, e não será objeto da atividade da empresa qualquer negócio imobiliário ligado à alteração legislativa” em causa. Mas não responde, de viva voz, aos jornalistas.
16 de fevereiro
André Ventura, líder do Chega, ameaça com uma moção de censura ao Governo se Luís Montenegro não der explicações sobre o caso, dando ao primeiro-ministro um prazo de 24 horas para o fazer. André Ventura, ele próprio debaixo de fogo por causa das polémicas a envolver deputados e dirigentes, justifica a intenção com a “falta de resposta a questões básicas e a suspeita absoluta de corrupção sobre o primeiro-ministro”. Sem respostas, o líder do Chega deu mais um dia ao chefe do Governo para se explicar.
18 de fevereiro
Esgotado o prazo dado ao primeiro-ministro, Ventura anuncia a moção de censura, que tem chumbo garantido. A oposição vai carregando nas críticas e nos pedidos de esclarecimento. Pedro Nuno Santos, secretário-geral do PS, assinala por diversas vezes que o silêncio do primeiro-ministro adensa as dúvidas e compara a situação ao caso que levou à demissão do secretário de Estado Hernâni Dias.
Pedro Duarte, ministro dos Assuntos Parlamentares, reage considerando “anedótica” a iniciativa do Chega e defendendo que a conduta do primeiro-ministro é “à prova de bala”. Sobre o silêncio do primeiro-ministro, estratégia, aliás, que Montenegro tem adoptado em várias ocasiões, Pedro Duarte afirma que o “primeiro-ministro não tem de passar 24 horas a dar esclarecimentos a dúvidas que são relativamente ridículas”. De viagem ao Brasil, para participar na cimeira luso-brasileira, o primeiro-ministro remete todos os esclarecimentos para o debate no Parlamento. Fá-lo através da rede social X (antigo Twitter) e no dia seguinte, perante os jornalistas, sobre a moção de censura diz apenas estar “muito tranquilo”.
21 de fevereiro
Montenegro aterra na primeira moção de censura ao seu Governo e chega ao Parlamento carregado de documentação. Diz que considerar a empresa familiar uma imobiliária é “manifestamente despropositado” e “um tiro ao lado”. Reitera que não há qualquer conflito de interesses e revela a faturação da Spinumviva. O ano de 2022 tem particular destaque, nesse ano a empresa faturou 415 mil euros e teve resultados líquidos de 240 mil euros. Sobre os clientes, Montenegro diz quais os seus ramos de atuação, mas recusa-se a dizer quem são. Encarada por todos os partidos como uma manobra de diversão do Chega, a iniciativa acaba por não correr mal ao primeiro-ministro que, confiante, afirma: “A partir de hoje, só respondo a quem for tão transparente quanto eu.”
27 de fevereiro
O Correio da Manhã noticia que Luís Montenegro defendeu a Solverde nas negociações com Estado, chefiado na altura por António Costa, para definir a atribuição de compensações nos negócios dos casinos devido à pandemia. Na sequência destas negociações, a Solverde e o Governo assinaram aditamentos aos contratos de concessão relativos à exploração do jogo nos casinos do Algarve e de Espinho. Esses aditamentos foram assinados a 10 de março de 2022, a três meses de Luís Montenegro assumir a liderança do PSD. Fruto desse acordo, a concessão foi prolongada até ao final deste ano. Tema que o atual Governo terá então em mãos. O primeiro-ministro revela que pedirá escusa, garantindo dessa forma que não estará em nenhum processo decisório envolvendo a Solverde.
28 de fevereiro
O Expresso noticia que a empresa criada pelo primeiro-ministro recebe uma avença mensal de 4.500 euros da Solverde. De acordo com o semanário, este contrato de consultoria e gestão de proteção de dados está em vigor desde julho de 2021 e é uma das fatias mais importantes das receitas mensais da Spinumviva: cerca de um terço dessas receitas. A pressão aumenta e Luís Montenegro não consegue ‘desviar-se’ mais do tema.
A cumprir agenda no Porto à margem da visita do presidente francês Emmanuel Macron a Portugal, o primeiro-ministro defende novamente nunca ter agido em conflito de interesses, mas reconhece que a notícia “não é agradável” e suscita “apreensão”. Anuncia, por isso, que vai fazer uma avaliação profunda das suas condições pessoais e políticas, convoca um Conselho de Ministros extraordinário e agenda uma declaração ao país para o dia seguinte, sábado. Nestas declarações, o primeiro-ministro também encoraja os clientes da empresa a dar a cara, mas a sua identidade acaba por ser desvendada pela própria Spinumviva, através de um comunicado. São cinco os clientes desvendados, além da Solverde.
1 de março
Com todos os seus ministros na retaguarda, Luís Montenegro faz uma declaração ao país, sem direito a perguntas dos jornalistas, para reafirmar que nunca agiu em conflito de interesses e garantir que não estará envolvido em nenhuma decisão que envolva a Solverde. Anuncia que a Spinumviva passa a ser “totalmente detida” pelos filhos e que a sede da empresa familiar deixará de ser a residência de família. Passa depois a elencar os ‘feitos’ do seu Governo e os aumentos aos polícias e aos reformados. “Portugal está bem e recomenda-se”, chegou a dizer. E termina a declaração dramatizando a situação política. Afirma que não pode ser “primeiro-ministro a todo o custo” e pede uma clarificação das suas condições ao Parlamento, admitindo uma moção de confiança, sabendo já de antemão que conta com o chumbo do PS.
Na resposta ao repto de Montenegro, o PCP antecipa-se e anuncia uma moção de censura, baralhando o jogo. Pedro Nuno Santos, o último a reagir, lamenta que os comunistas tenham “mordido o isco” e anuncia que chumbará qualquer das moções: a de censura e a de confiança. Só que o chumbo da primeira pode levar Montenegro a não cumprir com a ameaça. Miranda Sarmento, ministro das Finanças, assinala, em entrevista nesta noite à RTP, que “não se justifica” a moção de confiança se a censura for chumbada. Só que a oposição não se esquecerá das palavras de Montenegro nem da empresa que o assombrou e assombrará. O xadrez político promete.
2 de março
Com a poeira a assentar, o dia foi marcado pelo rescaldo das declarações do dia anterior e o surgimento de outros protagonistas a darem o seu ponto de vista sobre a situação em torno da empresa familiar de Luís Montenegro e as repercussões para o Governo que lidera. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, pediu à oposição que deixasse o Governo trabalhar e de seguida, o PCP, na voz de Paula Santos, líder parlamentar dos comunistas, deixou um ataque ao PS pelo facto de Pedro Nuno Santos ter revelado a intenção dos socialistas em chumbar a moção de censura (que já deu entrada na Assembleia da República). Francisco Assis, eurodeputado eleito pelo PS, também falou este domingo e deixou um conselho ao líder socialista: caso Luís Montenegro não apresente uma moção de confiança, o PS deve mesmo avançar com uma moção de censura.
5 de março
Sem surpresas, a moção de censura do PCP foi chumbada. O debate serviu essencialmente para o primeiro-ministro anunciar que apresentaria uma moção de confiança ao Governo, argumentando que eleições antecipadas são “um mal necessário” para impedir a “degradação da vida política e governativa”. “Não estamos disponíveis para aqui estar na atmosfera das intrigas permanentes que só têm um objetivo: a degradação da vida política e governativa”, afirmou o primeiro-ministro, dizendo que o país não “pode ficar prisioneiro do egoísmo e do taticismo” da oposição, afirmou Luís Montenegro.
6 de março
O Governo aprovou em Conselho de Ministros a moção de confiança. O texto começa por enumerar todos os feitos do executivo liderado por Montenegro, dos aumentos das pensões à descida dos impostos, passando pelo bom desempenho da economia e pelas medidas tomadas no dossiê da imigração e saúde. Sublinha depois que, apesar de prestados esclarecimentos sobre a sua situação patrimonial, e de não ter sido apontada qualquer ilegalidade, “parece ter-se entrado numa espiral sem fim, em que qualquer explicação é imediatamente revirada visando suscitar uma nova dúvida sem razão, nem sentido”.
Para o Executivo, “as sucessivas declarações dos principais dirigentes do PS parecem refletir uma férrea vontade de aprofundar um clima artificial de desgaste e de suspeição ininterrupta sobre o Governo”. “Permitir o arrastamento do presente cenário seria contrário ao interesse nacional” e é, por isso, a “hora de cada um assumir as suas responsabilidades”, remata o texto da moção enviado para o Parlamento no mesmo dia.
7 de março
Pela voz de Castro Almeida, o Governo admite que a moção de confiança poderia ser retirada, mas se cumpridos alguns passos: “Acho que se o PS vier declarar que reconhece ao Governo condições para executar o seu programa, se declarar que se considera satisfeito com os esclarecimentos dados e que retira a Comissão Parlamentar de Inquérito, acho que há condições para a moção de confiança poder ser retirada”. Mas Leitão Amaro, em declarações no briefing de Conselho de Ministros, não subscreve integralmente a hipótese aberta pelo ministro da Coesão. “É o tempo das oposições”, afirma, sustentando que a moção de confiança é mesmo “a última oportunidade” para evitar eleições.
8 de março
Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos trocam acusações responsabilizando-se mutuamente da crise política. O primeiro-ministro defende eleições para evitar país “envolto em lama”. “Não deixa de ser caricato, porque quem criou a lama foi Luís Montenegro. Luís Montenegro está na lama, arrastou o PSD e o seu governo para a lama e agora quer atirar o país para a lama”, responde o líder socialista.
10 de março
O primeiro-ministro e o secretário-geral do PS dão entrevistas na véspera da votação da moção de confiança, na TVI e na SIC, respetivamente, quase à mesma hora. Um e outro confirmam que não vão ceder. Nem o primeiro-ministro retira a moção de confiança, nem Pedro Nuno Santos retrocede face ao que sempre disse que faria. Seria “impensável”, diz, analisando que a moção de confiança é “um pedido de demissão cobarde” de um primeiro-ministro “sem ética”. Luís Montenegro declara “não fazer sentido” retirar a moção, diz ter a convicção plena de que não cometeu qualquer crime e garante avançar como candidato a primeiro-ministro mesmo que seja constituído arguido. Afirma também que não fez e não fará fretes e não vê razões para apresentar a demissão. Quando assim for, não precisará que lhe indiquem “a porta”.
O Chega reafirma o voto contra a moção. “Nem que Cristo desça à terra” Ventura daria confiança ao Governo da Aliança Democrática. Ao final da noite, o PS reuniu, à porta fechada, a Comissão Política para debater o cartão vermelho ao executivo PSD/CDS. A mensagem que saiu após a reunião da cúpula é que o PS está “unido” na decisão tomada. Ao Parlamento chegam as respostas do primeiro-ministro às questões colocadas pelo Bloco de Esquerda e pelo Chega. Nos esclarecimentos dados, o primeiro-ministro continua sem relevar clientes ocasionais da Spinumviva, montantes recebidos e serviços feitos. O BE considera que Montenegro não esclareceu questões e violou dever de exclusividade.
Durante a tarde, os socialistas avançaram com o requerimento para uma comissão parlamentar de inquérito à empresa familiar de Luís Montenegro feita em 90 dias.
11 de março
Um ano e um dia depois do PSD/CDS terem vencido as eleições legislativas que permitiram à AD governar, o Governo caiu, com a já esperada rejeição da moção de confiança. O Presidente da República começa a ouvir os partidos políticos no dia seguinte; convocará depois o Conselho de Estado e marcará eleições possivelmente para 11 ou 18 de maio. O Governo da AD torna-se o segundo a cair na sequência da rejeição de uma moção de confiança, 48 anos depois.
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