Em “Ambição. Preparar Portugal Para a Geração Mais Bem Preparada”, Daniel Traça faz uma análise das causas e consequências da incapacidade de Portugal para reter o talento que produz e deixa um conjunto de pistas para que o país comece a inverter a trajetória e afirme uma ambição coletiva que, claramente, tem faltado. O Jornal Económico antecipa dois trechos do livro que vai ser apresentado esta segunda-feira, em Lisboa: “O Estado e a economia: Ideologia vs. pragmatismo” e “A caminho do pragmatismo estratégico”.
«A relação do Estado com a economia faz parte da história da humanidade e está no centro das grandes transformações sociopolíticas do século XX e, por consequência, dos grandes debates ideológicos até ao dia de hoje. Liberalismo ou socialismo são as religiões dos últimos 100 anos, em nome das quais muitas guerras e revoluções se têm travado. Vale a pena revisitar um pouco a história desta dialética para enquadrar os debates atuais e, sobretudo para perceber as suas limitações.
O século XIX assiste ao nascimento das ideias liberais que, na sua declinação económica, protagonizada por Adam Smith e David Ricardo, sugere a capacidade dos mercados e da concorrência para otimizar o funcionamento da economia, por ação de uma mão invisível descentralizada. O liberalismo político e económico é posto em causa pelos excessos da revolução industrial que tornaram claro que, se o Estado não deve proteger o interesse dos poderosos pelos custos para a economia, deve proteger os interesses dos mais desfavorecidos.
Com o foco crescente nos direitos humanos e dos trabalhadores, o papel do Estado na promoção da justiça social tornou-se mais exigente. Mas o grande impulso da intervenção surge com a solução de John Maynard Keynes de uma política fiscal proativa como solução para a grande depressão dos anos 1930.
A direção do pêndulo volta a mudar a partir dos anos 1980 com a eleição de Ronald Reagan nos Estados Unidos e de Margaret Thatcher no Reino Unido, numa plataforma para desmontar a intervenção do Estado na economia que ganhou seguidores pelo mundo. A frase famosa de Thatcher «o governo dos negócios não é o negócio do governo» – «the governance of business is not the business of government» – capta a ideologia que os anima. O pai intelectual deste movimento é o economista Milton Friedman.
Nos países desenvolvidos, foi a crise financeira de 2008 a tornar claras a limitações do modelo. Hoje, vivemos a vontade de reimaginar o capitalismo, à luz destas experiências de pouco mais de dois séculos, e dos desafios criados pela crise climática, pela desigualdade e pela polarização sociopolítica que a tecnologia e a globalização trouxeram, e por uma governança empresarial inspirada pelo foco neoliberal nos interesses dos acionistas sobre os demais stakeholders. Consequentemente, a doutrina continua a dividir-se a e digladiar-se.
É importante reconhecer que este pêndulo histórico de intervenção do Estado tem por detrás algum progresso intelectual, sobre o qual temos de construir, para não estar a reinventar a roda e a cair nos mesmos erros.
Se o primeiro movimento de intervenção do Estado parte de um reconhecimento da relevância política, económica e social das falhas de mercado, o segundo movimento de retração, pela síntese neoliberal, não invalida o papel destas falhas. O que orienta o movimento neoliberal é o reconhecimento de que as falhas de mercado não são tão graves, mas, sobretudo, a identificação das falhas do Estado e, nesse contexto, da sua incapacidade para resolver as falhas de mercado de forma eficaz e em tempo útil.
Neste sentido, a intervenção do Estado vive-se numa tensão entre a magnitude relativa entre as falhas de mercado e as falhas do Estado e exige, muito mais que um debate ideológico, uma perspetiva estratégica muito pragmática para definir a melhor solução no balanceamento destas falhas, incorporando o contexto cultural e histórico como fator de enquadramento.
Lee Kwan Yew, o fundador de Singapura, faz doutrina quando afirma que «o teste final ao valor de um sistema político é saber se ajuda essa sociedade a criar condições que melhorem o nível de vida da maioria do seu povo» e que, para tal, «nunca foi prisioneiro de nenhuma teoria». Este pragmatismo estratégico é, a meu ver, o cânone para este século, em duas dimensões fundamentais.
Em primeiro lugar, a relevância das falhas do Estado depende não apenas de fatores externos, de índole histórica ou cultural, mas sobretudo dos esforços políticos, técnicos, tecnológicos e financeiros para melhorar a gestão no setor público, administrativo e/ou empresarial. Neste sentido, a política pública afeta o desenvolvimento económico, antes de mais, pela capacidade de atenuar as falhas do Estado, criando instituições fortes, credíveis e eficazes. A realização do papel das instituições e das falhas do Estado teve impacto fundamental nas políticas públicas a nível internacional, nomeadamente na ação do Banco Mundial e do FMI, que passaram a acrescentá-las ao seu roteiro neoliberal. Promover o crescimento económico passa a ser assim, e antes de mais, melhorar o funcionamento do Estado sem explodir os seus custos – isto é, assegurar a eficiência do Estado.
Em segundo lugar, a dimensão das falhas de mercado e falhas do Estado pode variar em contextos culturais, institucionais e históricos diferentes. Nesse sentido, a doutrina do pragmatismo estratégico sugere que quando conseguimos um Estado que funcione melhor o grau de intervenção pode/deve ser maior e, vice–versa, um Estado de menor qualidade deve interferir menos, para evitar «estragar». Isto implica (a) que o grau ótimo de intervenção na economia (equilibrando falhas de mercado e do Estado) pode variar de país para país, e (b) que as lições de um país podem não se aplicar a outro. O sucesso das transformações neoliberais dos anos 1990 nos países do Leste Europeu, como a Polónia, contrastam com os resultados desastrosos da experiência russa no mesmo período, que destruiu o princípio de democracia e levou ao poder uma ditadura encabeçada por Vladimir Putin. A decisão sobre o nível e a forma de intervenção do Estado passa assim para um âmbito fundamentalmente pragmático, adequado à situação e seu contexto, e não a debates ideológicos com 200 anos de história.
Podemos assim identificar dois pilares essenciais do pragmatismo estratégico: (i) melhorar o funcionamento e a eficiência do Estado para reduzir falhas de mercado e (ii) uma geometria variável de intervenção otimizando e equilibrando falhas do Estado e falhas de mercado.
Estas teses de pragmatismo estratégico, com as suas duas dimensões, têm escapado frequentemente ao debate político no mundo ocidental, preso numa dinâmica política identitária emoldurada por fações e partidos, e definida por lógicas doutrinárias.
Em Portugal este tem sido, para mim, um dos mais importantes entraves ao desenvolvimento, como iremos ver ao longo deste capítulo. As visões e os debates políticos em Portugal e noutros países (sobretudo do sul) da Europa são autênticos conflitos religiosos entre os que acreditam no Estado e desconfiam dos privados, e os que acreditam nos privados e desconfiam do Estado. Por detrás desta dinâmica escondem-se muitas vezes dinâmicas de interesses privados, pessoais ou corporativos que veem numa maior ou menor intervenção mais ou menos potencial para beneficiar.
Seja por compromissos emocionais ou de interesse, este debate no mundo ocidental, e nomeadamente em Portugal, tem progredido pouco. Muitas vezes, ao testemunhar os debates políticos sobre o papel do Estado, em Portugal ou em muitos países europeus, sinto-me a viajar para trás 200 anos, no tempo em que liberalismo e socialismo lutavam pela primazia ideológica na Europa».
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