O regime de residentes não habituais (RNH) tem dado muito que falar nos últimos tempos, até porque chegou ao fim no início de 2024 tendo sido substituído por outro mais restrito. Mas foi neste mesmo ano que a despesa fiscal com este regime registou o maior aumento desde que foi criado, em 2009, com o custo com o RNH a disparar quase 500 milhões de euros para 1.741 milhões de euros no ano passado.
Segundo a Conta Geral do Estado (CGE) de 2024, divulgada esta semana, este regime foi mesmo aquele que representou maior despesa fiscal em IRS (cerca de 66,4% do total). Fiscalistas admitem que o regime transitório terá levado a uma corrida de pedidos de adesão e alertam que esta é “despesa” é virtual, pois representa receita que nunca existiria sem o regime.
Fiscalistas admitem, assim, que o regime transitório, criado entre o fim do RNH e o início do IFICI (Incentivo fiscal à investigação financeira) tenha levado a uma corrida de pedidos de adesão. Recorde-se que este regime acabou com taxa de IRS de 10% para reformados estrangeiros a residir em Portugal (exceto para aqueles que atenderam aos requisitos até 31 de dezembro de 2023 e tenham apresentado o pedido de inscrição como RNH em 2024). Mas manteve a taxa especial de 20%, durante 10 anos, para profissionais altamente qualificados em áreas de inovação, ciência e pesquisa, desde que tenham sido residentes noutro país nos cinco anos anteriores àquele em que se tornaram residentes fiscais em Portugal.
Quanto à corrida de pedidos, o ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Carlos Lobo, considera “evidente que o anúncio da extinção do regime gerou um efeito de antecipação (“last call effect”), comum em qualquer sistema com prazos de elegibilidade”. “Houve seguramente um acelerador de candidaturas entre o fim anunciado do RNH e o início do novo regime (IFICI), que por sinal é ainda uma entidade difusa e mal explicada”, afirmou ao JE.
A mesma interpretação tem a fiscalista Anabela Silva, partner da EY: “Ainda que muitas razões diversas possam justificar esse aumento mais significativo (já que houve sempre aumento em todos os anos, pois o regime tornou-se bastante conhecido a nível internacional), seguramente a notícia do fim do regime pode ter contribuído para acelerar os planos de transição para Portugal já em 2023, contribuindo para uma maior concentração do número de inscrições”.
Despesa é a maior entre os descontos fiscais em IRS
Sobre a evolução da despesa fiscal (as receitas que o Estado prescinde de receber face às que receberia se aplicasse as taxas de imposto normais) em 2024, a CGE conclui que os benefícios fiscais relativos ao RNH somaram 1.741 milhões de euros, representando mais de dois terços (66,4%) dos 2.622 milhões de euros de despesa fiscal referente ao IRS que no ano passado aumentou 556 milhões (mais 27%).
Esta evolução, segundo a CGE, “é essencialmente explicada pelo comportamento da despesa relativa aos rendimentos auferidos em atividades de elevado valor acrescentado por residentes não habituais em território português, com mais 444,5 milhões de euros (34,3%)”. Para Anabela Silva este aumento foi fruto do aumento do número de RNH inscritos, recordando que em 2023 foram contabilizados 114.645 beneficiários, mais 40.387 pessoas do que no ano anterior (mais 54,4%).
A CGE não faz referência ao número de beneficiários do RNH em cada ano.
Além da maior subida de sempre em termos absolutos no custo do RNH, a CGE dá ainda conta de outros contributos para o aumento da despesa fiscal em IRS: a isenção parcial de rendimentos das categorias A e B auferidos por jovens nos primeiros cinco anos após a conclusão dos estudos, com mais 48 milhões de euros (158%); as deduções à coleta das pessoas com deficiência, com um crescimento de 28,7 milhões (7,5%) e a dedução do IVA por exigência de fatura, que evidenciou um acréscimo de 16 milhões (16%).
Contas feitas, o custo com o RHN foi em 2024 mais de 10 vezes superior aos 174 milhões orçamentados para 2016, o primeiro ano em que a despesa fiscal com este regime passou a estar detalhada nos mapas das propostas do OE.
Em termos globais, segundo a CGE, a despesa fiscal situou-se nos 17.817 milhões de euros, mais 2.762 milhões de euros (18,3%) face ao ano anterior. Para esta variação contribuíram os acréscimos registados na despesa fiscal em todos os impostos, com exceção do ISP. Só os impostos sobre o rendimento somaram 4.570 milhões de euros (mais 885 milhões face a 2023), representando 26% do custo total que o Governo suporta quando concede benefícios fiscais, ou seja, quando reduz ou elimina impostos para incentivar certos comportamentos ou setores.
A despesa “é virtual”. RNH traz receita ao país, avisam fiscalistas
Numa altura em que os residentes não habituais asseguram uma poupança fiscal recorde, fiscalistas alertam ao JE, que a pergunta certa não é “quanto se perdeu”, mas quanto se ganhou com o regime RNH [residentes não habituais]. É o caso do antigo governante Carlos Lobo, que avança com uma estimativa: “no ano passado quantifiquei esse impacto positivo em 2.000 milhões de euros e ninguém contestou!”. Carlos Lobo salienta ainda que “a ausência da receita incremental falseia a perceção pública e distorce a racionalidade política”.
Para este fiscalista, ”mais irónico — ou trágico — é que o regime é vítima do seu próprio sucesso. Cresceu? Atraiu mais gente? Produziu impacto? Então extingue-se”, considerando que “é o paradoxo crónico dos benefícios fiscais em Portugal: se funcionam, acabam-se! Se não funcionam, eternizam-se!
Este padrão, frisa, revela uma “inversão completa” da racionalidade económico-fiscal. Explica aqui que “um benefício fiscal que não gera atração real nem transforma comportamentos devia ser extinto. Mas quando gera resultados, como no caso do RNH, torna-se politicamente insustentável pelo seu próprio êxito”. Uma referência ao fim do RNH no OE2024 com o argumento de já tinha sido cumprido do seu propósito principal. Estes incentivos fiscais acabaram por ser reorientados para um regime mais restrito no domínio da investigação científica e inovação.
Na altura, António Costa alegou também que a chegada de estrangeiros ao país que beneficiam deste regime tem influência na subida dos preços das casas e, portanto, no acesso à habitação – muito embora os especialistas considerem que o impacto é “residual”.
“O RNH foi, talvez, o regime mais bem-sucedido de política fiscal seletiva da última década em Portugal. A sua morte é política, não técnica. E o custo real — esse sim — será sentido nos próximos anos, quando percebermos que atrair talento, rendimento e capital não é um automatismo, mas uma competição global feroz”, remata Carlos Lobo.
Também Anabela Silva, partner da EY defende que o RNH é um caso em que o benefício fiscal poderá não se traduzir efetivamente em receita cessante uma vez que, frisa, “na ausência de benefício, não existiria a atividade que origina o benefício. Por outras palavras, caso não existisse o regime dos residentes não habituais, muitos dos indivíduos em causa não teriam transferido a sua residência para território português, e desse modo, não passariam a gerar receita fiscal nem a incorrer em despesas beneficiando a atividade económica em Portugal”.
”Mais do que considerar-se a receita cessante, seria importante medir-se a receita fiscal gerada pelos residentes não habituais (sobre o qual existe escassa informação disponível)”, alerta a fiscalista, numa alusão à ausência de estatísticas e informação da AT e da Segurança Social.
Na mesma linha, Carlos Lobo considera que “se não houvesse RNH, nenhum destes contribuintes estaria cá”, realçando que “a verdadeira métrica de avaliação deveria ser a receita adicional efetivamente obtida, direta e indiretamente — quer em IRS, quer via consumo, investimento, criação de emprego qualificado e contribuições para a Segurança Social”.
Este fiscalista considera, por isso, que a despesa fiscal associada ao RNH “é uma ficção contabilística com efeitos perversos sobre o debate público”, defendendo que “a CGE deveria ser mais do que um espelho estático de valores nominais. Deveria oferecer uma análise dinâmica e estratégica do impacto real dos instrumentos fiscais, distinguindo entre despesa fictícia e receita gerada por políticas fiscais inteligentes”.
“Esta chamada ‘despesa’ é virtual: representa receita que nunca existiria sem o regime”, frisa o antigo SEAF. “Em suma: o RNH não custou 1.741 milhões. O RNH valeu pelo menos isso — e provavelmente muito mais. Repito: 2.000 milhões de euros, no mínimo”, conclui Carlos Lobo.
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