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(Digital) Omnibus: a arte europeia de criar o problema e celebrar a solução

Primeiro constrói-se um sistema exigente, complexo e caro; depois celebra-se a sua simplificação como se estivéssemos perante uma conquista inesperada.
26 Novembro 2025, 11h48

A Comissão Europeia anunciou recentemente o chamado Digital Omnibus, um pacote legislativo que, de acordo com a nota de imprensa (e numa tradução livre), vem trazer “regras digitais da UE mais simples e novas carteiras digitais para poupar milhares de milhões às empresas e impulsionar a inovação”. Tive de ler duas vezes. Porque há piadas que se escrevem sozinhas.

Há anos que tento entender a abordagem regulatória da UE. Com uma vocação especial para identificar em cada novo fenómeno uma excelente oportunidade para legislar, rapidamente apresenta um quadro regulatório ambicioso, detalhado e complexo. Pouco depois, a reflexão inevitável: o quadro normativo é, afinal, prematuro, demasiado ambicioso, excessivamente complexo, inimigo da inovação, impossível de cumprir ou de fazer cumprir, ou tudo isso ao mesmo tempo. E é nessa altura que um pacote “Omnibus” chega para simplificar o que antes se complicou.

Os exemplos, ao longo dos anos, são incontáveis. Só este ano a Comissão Europeia já apresentou seis pacotes de simplificação (de Omnibus I a VI), que vão da sustentabilidade à Política Agrícola Comum, passando pela defesa, produtos químicos, mercado único e investimentos da UE.

À primeira vista, mesmo que numa “segunda tentativa” ou num momento de “reponderação”, simplificar parece sempre uma boa ideia. O problema coloca-se quando essa simplificação aparece depois de investimentos significativos em processos, equipas e sistemas de compliance concebidos para cumprir, com rigor, as primeiras regras (afinal) demasiado exigentes.

É precisamente aqui que a aparente virtude dá lugar a uma iniquidade difícil de ignorar: quem cumpre cedo, paga duas vezes. Com efeito, os early adopters – crentes na continuidade do primeiro desenho regulatório – e que por isso avançaram de imediato, reorganizaram processos, e implementaram soluções, acabam a pagar o preço da conformidade inicial e o da reconfiguração “pós-simplificação”. Quem espera, beneficia da versão 2.0, mais leve e, normalmente, mais clara.

Veja-se, este propósito, a reação de várias empresas ao pacote “Omnibus” da sustentabilidade. Este pacote legislativo adia a implementação de obrigações de reporte de sustentabilidade para determinadas categorias de empresas, traz propostas de simplificação profunda de regras de reporte e, em alguns casos, limita o perímetro das empresas anteriormente abrangidas.

Mais de 480 investidores e empresas como Nestelé, Unilever, Mars, Ferrero, Primark, e L’Occitane subscreveram uma carta aberta a solicitar a preservação das normas essenciais do quadro regulatório atual. Nessa comunicação chamaram a atenção para a necessidade de um quadro legal claro e estável, deram conta dos recursos já investidos no cumprimento das obrigações legais existentes e alertaram para o impacto da incerteza regulatória no investimento. Não é difícil perceber a perplexidade destas organizações.

Na passada semana, com a apresentação da proposta de “Digital Omnibus”, a Comissão Europeia sugere simplificar as normas aplicáveis ao “ecossistema digital”, com impacto, designadamente, no Regulamento da Inteligência Artificial, Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, Diretiva SRI 2 (NIS2), Regulamento da Ciber-Resiliência e Regulamento dos Dados. Para isso, “reabre” alguns aspetos do RGPD, altera o mecanismo de reporte de incidentes de cibersegurança e, no novíssimo Regulamento de Inteligência Artificial, elimina a obrigação geral de promoção de literacia em IA (que entrou em vigor em fevereiro deste ano), aplica uma moratória para as obrigações de sistemas de alto risco, e suprime a prescrição de um plano harmonizado de monitorização pós-comercialização, entre outras alterações.

Que fique claro: defendo regras simples, equilibradas e que abram espaço à inovação. Nessa medida, aplaudo boa parte do que o Digital Omnibus vem fazer. O problema está na abordagem que a UE teima em adotar: legislar rápido para chegar primeiro (foi assim com o Regulamento Geral de Proteção de Dados e com o Regulamento de Inteligência Artificial), mesmo que isso signifique travar quem inova e premiar quem espera.

É difícil não esboçar um sorriso perante esta coreografia: primeiro constrói-se um sistema exigente, complexo e caro; depois celebra-se a sua simplificação como se estivéssemos perante uma conquista inesperada. O ciclo repete-se, quase com elegância, e todos fingimos que não sabemos como começou.


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