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Distorção absurda dos mercados financeiros

Em que consiste então a atual distorção, a um nível absurdo apesar de pouco sentido pelo cidadão comum, dos mercados financeiros por parte dos Bancos Centrais? Está precisamente na desconexão entre o ritmo de crescimento do volume de massa monetária e o ritmo de crescimento da produção de bens, só que desta vez com algumas nuances sofisticadas.
15 Fevereiro 2021, 07h43

Os mercados financeiros têm sido alvo de distorções absurdas por parte dos bancos centrais. Para se perceber melhor o que se passa, começo por explicar resumidamente quais as funções económicas dos mercados financeiros e dos bancos centrais.

Os mercados financeiros desempenham uma função fundamental na economia que é a de encaminhar os recursos financeiros dos poupadores para aqueles que desejam gastar mais do que os recursos financeiros que têm disponíveis, seja para investimentos produtivos (comerciais, industriais, etc.), seja para consumo.

Os bancos centrais têm, entre outras funções, as de emissão da moeda e execução da política monetária do Estado (ou de um conjunto de Estados, como no caso do Banco Central Europeu). O volume da massa monetária de uma economia é, portanto, controlada pelo Banco Central dessa economia, nomeadamente através da conjugação de vários instrumentos de política monetária, incluindo a emissão de moeda, operações de mercado aberto, taxa de reserva legal imposta à banca, e política de taxas de juros.

Antes da autonomização dos Bancos Centrais, estes dependiam diretamente dos governos nacionais. Alguns governos com uma visão predominantemente de curto prazo caíram na tentação fácil de emitir moeda a um ritmo muito superior ao ritmo da produção de bens, uma vez que no curto prazo é muito mais simpático emitir moeda do que cobrar impostos. No entanto, a médio/longo prazo esta prática é geradora de altas taxas de inflação. Talvez não seja de estranhar que o primeiro banco central totalmente autónomo do governo nacional foi o Deutsche Bundesbank (Banco Central da Alemanha) desde 1951, uma vez que a República de Weimar (República Alemã no período entre as duas grandes guerras) foi palco de hiperinflação entre 1921 e 1923, com taxas de inflação anuais astronómicas, que chegaram a ser superiores a 20% ao dia!

Atualmente, o principal objetivo da política monetária de qualquer banco central é o de assegurar que a taxa de inflação se mantenha moderada. Este objetivo tem sido superado com sucesso pela maior parte dos países, com a generalidade dos países desenvolvidos com taxas de inflação anuais abaixo dos 5%.

Até aqui, tudo bem. Em que consiste então a atual distorção, a um nível absurdo apesar de pouco sentido pelo cidadão comum, dos mercados financeiros por parte dos Bancos Centrais? Está precisamente na desconexão entre o ritmo de crescimento do volume de massa monetária e o ritmo de crescimento da produção de bens, só que desta vez com algumas nuances sofisticadas. Vamos por partes.

Tomando como exemplo o caso dos EUA, entre 1/1/2020 e 1/1/2021 o stock de moeda (medido pelo M2) aumentou de 15.335 biliões de dólares (USD) para 19.133 biliões USD, ou seja, em 1 ano cresceu 24.8%. Esta percentagem compara com as taxas de crescimento real do PIB e de inflação projetadas pelo Banco Central dos EUA (Fed) para 2020 de -2.5% e 0.6% respetivamente. Então, se a variação em termos reais do PIB foi de -2.5% e o stock de moeda cresceu 24.8%, porquê uma taxa de inflação praticamente nula? É aqui que entra a sofisticação do Banco Central, que não existia quando os bancos centrais se tornaram autónomos. O mecanismo de criação de moeda é concretizado através da banca, que ao conceder crédito cria moeda a partir da base monetária criada diretamente pelo Banco Central. Tradicionalmente, este crédito dirige-se maioritariamente a investidores e consumidores que irão usar o dinheiro para comprar bens e serviços não financeiros (no crescimento dum negócio comercial, na compra dum imóvel para habitação, etc.). Ora, como a economia está em recessão e os agentes da economia real não contraem empréstimos ao ritmo a que a massa monetária aumenta, a sofisticação dos Bancos Centrais consiste em direcionar o dinheiro em excesso para os mercados financeiros, em parte por via da banca de investimento, em parte diretamente na aquisição de títulos financeiros pelos Bancos Centrais. Como o dinheiro em excesso face à produção vai para os mercados financeiros, a inflação verifica-se nos títulos financeiros e não nos bens e serviços da economia real. É nisto que consiste a distorção dos mercados financeiros por interferência dos Bancos Centrais. No entanto, o grau de distorção é absurdo ao ponto de se verificarem aumentos para 2020 que chegam a 44% como no caso do índice NASDAQ (relembre-se, no ano em que o PIB diminuiu mais de 2%)!

A distorção absurda apresenta casos particularmente despropositados como o da Tesla, cuja cotação das ações subiram 695% em 2020, quando é sabido que os seus lucros são maioritariamente de créditos regulatórios (ou seja, sustentados essencialmente com dinheiro dos impostos). Porém, há um caso recente ainda mais absurdo.

Os grandes fundos de investimento (hedge funds) por vezes utilizam instrumentos financeiros que lhes permitem ganhar dinheiro quando a cotação de uma empresa desce. Tal aconteceu recentemente com o principal alvo sendo uma empresa chamada Gamestop (retalhista de jogos de vídeo). Um grupo de investidores (pequenos) combinaram (através da Reddit, uma agregação de notícias sociais) usar uma plataforma (chamada Robinhood) para comprar ações da Gamestop. A ideia era causar prejuízo aos hedge funds e ganhar com isso. E conseguiram. No dia 26 de janeiro a cotação fechou a 146 USD, e no dia 27 os Redditers (utilizadores da Reddit) começaram a comprar em massa ações da Gamestop, fazendo com que atingissem um máximo de 483 USD no dia 28. Este aumento de 231% em 2 dias causou enormes prejuízos aos hedge funds, tal como pretendido pelos Redditers. Este tipo de episódios, alimentados pela inundação de liquidez resultante da atuação dos bancos centrais, fruto do aumento disparatado da massa monetária, constitui uma distorção absurda dos mercados financeiros.

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