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Donald Trump e os bombos da sua festa

Avatares da intervenção do presidente dos Estados Unidos no exterior obedecem a um figurino muito particular. Mas o Irão não é a Coreia do Norte ou a Venezuela.
23 Janeiro 2020, 09h30

Dizem os analistas que o propagandeado elevado grau de imprevisibilidade das decisões do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deve ser tratado – por quem quiser seguir pistas que levem a apurar os interstícios dos seus raciocínios – como se se estivesse perante um medidor de audiências televisivas. A opção do norte-americanos, dizem, é manter as audiências presas ao capítulo seguinte, o que Trump só consegue se as decisões incorporarem elevado grau de idiossincrasia – ou, dito de outra forma, se a lógica não for chamada a tornar inteligível aquilo que é produzido com a intenção de baralhar.

Um ponto prévio: este manual de leitura dos avatares de Trump só serve para o quadro da política internacional da Casa Branca. A política interna, aquela que incide sobre as pessoas que, no limite, irão ou não lançá-lo num segundo mandato, obedece a outros princípios e a outro conjunto de regras, que de algum modo são de apreensão mais difícil quando observadas do exterior.

A Coreia do Norte
O primeiro grande happening internacional de Donald Trump foi o caso da Coreia do Norte. O presidente dos Estados Unidos conseguiu convencer toda a gente de que Kim Jong-un – que desde dezembro de 2011 se entretém a dar cabo da existência dos seus súbditos – era um perigo mundial e que a existência do anacrónico regime algures numa península asiática colocava todo o planeta na iminência de uma guerra nuclear.

Parecia uma anedota com pouca piada, mas Trump arranjou forma de atirar o problema para o topo das preocupações mundiais – sem a exclusão das Nações Unidas, que devia preocupar-se em não acreditar em todas as manchetes que lê. O resto da história é o que se sabe: houve umas ameaças, uma escalada de palavras pouco amistosas e, após alguns fogachos avulsos, uma cimeira ou duas. Mas aquilo morreu: as audiência já não acompanharam com interesse a segunda cimeira – parece que foi no Vietname – e o assunto foi enterrado há pouco menos de um ano no arquivo morto da Casa Branca.

A Venezuela
Kim Jong-un terá voltado para os seus afazeres caseiros e Donald Trump foi à procura de outra novela noutro lado qualquer. Apareceu-lhe a Venezuela. O presidente do país sul-americano estava mesmo a pedi-las: um boçal vindo diretamente de uma cabina de condução do metro de Caracas com um bigode que teria envergonhado José Estaline insistia em montar no quintal americano um país socialista – mesmo que o socialismo já tivesse dado mostras de ser um escombro de si próprio.

A gestão do conflito com a Venezuela foi todo um manual de como não fazer. A primeira peripécia foi, ao contrário do que havia sucedido com a Coreia do Norte, uma anedota com muita piada: a Casa Branca reconheceu Juan Guaidó como presidente da Venezuela no dia anterior ao próprio Juan Guaidó anunciar que, como presidente da Assembleia Nacional, não reconhecia Nicolás Maduro como presidente legítimo da república e que, por isso, o sucedia interinamente.

As semanas seguintes foram de tremendo reboliço e ainda hoje é difícil entender-se como é que, apesar de tudo, o país escapou a uma guerra civil. Trump deixou saber que o exército norte-americano estava a postos para entrar fronteiras dentro para repor a legalidade (a que a Casa Branca reconhecia) e que os canais do Brasil e da Colômbia estavam abertos para serem percorridos pelas botas das tropas norte-americanas, caso se desse o caso de ser vantajosa uma invasão por terra.

Depois a coisa foi acalmando e a novela acabou por passar de moda. Juan Guaidó não só não conseguiu levar o país para eleições livres, como, quase um ano depois (autoproclamou-se presidente a 23 de janeiro de 2019), perdeu-se numa trapalhada com um tal Luís Parra, que parece ser agora o presidente da Assembleia Nacional. Mas o dossier Venezuela há já muito que foi fazer companhia ao dossier Coreia do Norte no arquivo morto da Casa Branca, onde quer que fique.

O Irão
Desgraçadamente, o Irão não é nem a Coreia do Norte nem a Venezuela. Mas, perante a aproximação das eleições internas e da possibilidade de alguém quase tão pouco previsível como Trump disputar a corrida à Casa Branca (Michael Bloomberg), o presidente, com certeza recordando o que em tempos escreveu sobre Barack Obama (qualquer coisa como “Obama vai arranjar uma guerra com o Irão para ser reeleito”), decidiu aumentar a parada.

O Irão é, nos Estados Unidos, um ‘guião’ que está sempre a jeito para ser usado como líder de audiências – circunstância que só se repetirá no próprio Irão em relação aos Estados Unidos – e Donald Trump não se fez rogado. Depois de o mundo ter ficado abismado com a imprudência do gesto (o assassinato de Qasem Soleimani, comandante da Força Quds da Guarda Revolucionária, algo como se um drone iraniano tivesse alvejado o vice-presidente norte-americano Mike Pence), Trump tentou a velha tática do ‘toca e foge’: “Já viste como eu sou o mais forte? Agora vamos ali sentar-nos a beber uma cerveja e resolvemos isto como homens crescidos.”

Aparentemente, não é bem essa a ideia de Teerão e o mundo ainda está para ver se o presidente norte-americano consegue enviar o dossier para o arquivo morto com tanta facilidade como sucedeu nos dois casos anteriores. À bomba parece que a coisa não vai lá, pelo que a aposta agora está toda na possibilidade de dar força à força da oposição – que, apesar do toque a rebate que foi o enterro de Soleimani, voltou poucos dias depois à rua para chamar “ditador” ao líder supremo do país, Ali Khamenei.

A China
E aqui entramos no outro mundo: a guerra comercial com a China é também um problema interno, que implica diretamente com as tais pessoas que podem ou não voltar a manter Donald Trump como inquilino da Casa Branca por mais quatro anos. Os analistas menos dados à espuma dos dias afirmaram sempre que o caso tenderia a resolver-se com a aproximação do mês de novembro deste ano – quando se realizam as eleições.

Trump não cedeu ao primeiro impulso: quando a gigante General Motors anunciou que fecharia sete unidades industriais (e despediria 14 mil funcionários) por falta de dinheiro para pagar o aumento dos preços do aço e porque o mercado potencial da China encolhia para volumes irrisórios, o presidente dos Estados Unidos optou por irritar-se e chamar qualquer coisa próxima de “antipatriota” a Maria Teresa Barra, CEO da construtora automóvel.

Mas o seu plano continuou em frente – e passou por encontrar um novo inimigo: Jerome Powell, presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos. Mais um antipatriota, que só ao fim de muita ‘pancada’ acabou por ceder a Trump e iniciou um processo de descida das taxas de juro. Wall Street respondeu bem – andou a bater recordes durante várias semanas – e, uma vez aí chegados, Estados Unidos e China estavam preparados para assinar aquilo a que chamaram a primeira fase do processo de normalização das relações comerciais entre ambos.

Daqui por meio ano já ninguém se lembra disto – mesmo que entretanto o nivelamento da balança comercial entre os dois países (que de facto Trump conseguiu impor) já tenha desaparecido ou esteja prestes a descarrilar outra vez.

No meio de todas estas novelas, sobrevive a do Irão: os analistas concluíram rapidamente que a resposta ao assassínio de Qasem Soleimani, o ataque a uma base iraquiana onde deviam estar tropas norte-americanas, foi ‘combinada’ e para consumo interno. Tudo isso parece demasiado simples num país que se habituou a servir muito fria e em doses generosas a vingança pelas humilhações sofridas. Mas, se isso vier a acontecer, já Trump estará com certeza focado noutro guião qualquer.

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