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“É um orçamento pandémico, que espera pela vacina e pela retoma”

Ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais destaca ausência de medidas com impacto no “imediato ou sensível” nas empresas. E sinaliza inexistência de alívio fiscal real para as famílias.
20 Dezembro 2020, 16h00

Rogério Fernandes Ferreira defende que o OE2021 não traz medidas específicas para melhorar a economia. Considera que as poucas alterações fiscais introduzidas promovem a estabilidade das leis fiscais. Mas o reverso da medalha é a ausência de medidas com impacto no “imediato ou sensível” nas empresas. E sinaliza a não atualização dos impostos indiretos como “uma boa notícia” .

 

Este é um OE transformador da vida das pessoas e das empresas face aos efeitos negativos da pandemia?
Não me parece…

 

Vai no sentido da recuperação económica?
Não vejo medidas específicas neste orçamento dirigidas a melhorar a economia. É um orçamento pandémico, que espera pela vacina e pela retoma. A redução do IVA na eletricidade já tinha sido anunciada anteriormente e teve de aguardar luz verde da UE. Os ajustamentos nas retenções na fonte não constam do orçamento mas do relatório e, sendo positivos, corrigem um problema que vem muito de trás e que se tem vindo a repetir ano após ano.

Partilha da opinião que a proposta de OE “é uma grande desilusão” para as empresas? Quais as medidas fiscais que, na sua opinião, deviam ter sido tomadas?
Este orçamento não cura das empresas. São de louvar aliás as muito poucas alterações fiscais introduzidas e que por esta via promovem a estabilidade das leis fiscais. Não se identificam no OE nenhumas medidas fiscais com impacto, imediato ou sensível, nas empresas. Nem que contribuam de forma relevante para enfrentar as consequências da crise pandémica que, previsivelmente, se agravarão em 2021. Há apenas alterações pontuais, por exemplo no regime do estabelecimento estável para alinhá-lo com as propostas da OCDE no combate à erosão da base tributária e à transferência de lucros, bem como, para os anos de 2020 e de 2021, a suspensão do agravamento de 10% das tributações autónomas para as micro, pequenas e médias empresas e para as cooperativas que, nos últimos três anos, não tiverem prejuízos e que passaram a tê-los agora.

Quais as medidas fiscais que preconizaria com maior impacto nas empresas e nas famílias?
Medidas que incentivem na retoma o investimento externo e a poupança, respetivamente, é do que mais precisamos. Não temos capital e temos dívida.

E que medidas fiscais deveriam ser tomadas para aumentar o investimento?
Todas as medidas em que esteja a pensar dependem da possibilidade de o Estado poder prescindir, pelo menos num período pré-determinado, de receita fiscal. E isso depende, sobretudo, do nível das despesas, incluindo das resultantes do endividamento. Entre as mais óbvias está a redução da taxa do IRC. Isso permitiria libertar recursos nas empresas que o pagam para investimento e hoje já comparamos mal com países com os quais queremos ser comparados. Mas mais importante ainda é a redução gradual da divida, pública e privada. Há que incentivar, por via fiscal que seja, a capitalização das empresas, por exemplo via reforço do regime da remuneração convencional do capital social. E há principalmente que criar um ambiente propício à atração de capital e de investimentos e investidores externos para Portugal. A fiscalidade não é panaceia para a resolução de todos os nossos problemas económicos, de gestão e de produtividade.

Este é um OE que esquece o investimento privado como acelerador da recuperação económica?
Este é apenas um orçamento pandémico. É um orçamento de um país pobre e endividado, em plena crise pandémica. Não se identificam neste orçamento medidas relevantes de incentivo ao investimento privado, não se encontram neste orçamento medidas que possam estimular as famílias e as empresas a deslocar os seus investimentos para a economia real, o problema para já é de saúde pública e de manutenção da atividade empresarial possível.

 

Os empresários tinham pedido a suspensão da aplicação do adicional de 10% da tributação autónoma se uma empresa apresentar prejuízos fiscais em 2020 e 2021, indo o OE21 ao encontro desta expectativa. É uma medida com impacto relevante nas empresas?
Pode ter impacto relevante, sobretudo nas PME e microempresas, tem com certeza um impacto sensível. A tributação autónoma é uma tributação adicional e substituta do imposto sobre o lucro. Aplica-se sobre determinados gastos das empresas, por exemplo, ajudas de custo e encargos com viaturas. Não está dependente de a empresa apresentar lucro ou prejuízo. O legislador estabeleceu um agravamento de 10% caso as empresas apresentem prejuízo fiscal e isto representa uma penalização para as que tenham prejuízos reais. Na conjuntura excecional em que vivemos parece fazer sentido que não se penalizem estas empresas com o agravamento, quando é sabido que, maioritariamente, os prejuízos decorrem da crise económica provocada pela pandemia. Por outro lado, esse adicional dos 10% é suscetível de afetar os gastos e o investimento das empresas. A medida da suspensão dos 10% da tributação autónoma é por isso bem-vinda e positiva na atual conjuntura.

O Governo não vai atualizar taxas dos IEC, ISV e IUC para proteger o rendimento das famílias e ajudar as empresas a enfrentar o contexto de incerteza. Esta é uma boa notícia para empresas e famílias?
Claramente é uma boa notícia. Para as famílias porque não vão pagar mais e para as empresas porque podem vender mais. Mas também é uma boa notícia para estabilidade do nosso quadro legal e fiscal, que é muito importante não estar sempre a alterar. De resto, as taxas aqui em Portugal já são das mais altas. Os impostos especiais sobre o consumo e o ISV têm um impacto direto nos preços, pelo que num ano em que se prevê uma retração da economia, um aumento do desemprego e portanto uma diminuição do rendimento disponível das famílias, o não aumento destas taxas é uma boa notícia. A situação no IUC é semelhante, especialmente desde que este imposto passou a ser aplicável a todas as viaturas independentemente de as mesmas estarem em circulação.

Se o desconto no IVA for demasiado complexo e a redução nas taxas de retenção mensal do IRS irrelevante fica comprometido o sucesso de ambas as medidas enquanto estímulos para a economia?
O IVAucher é uma medida tendente a incentivar o consumo nos sectores da restauração, do alojamento e da cultura. Já a redução das taxas de retenção no IRS é uma medida que pretende corrigir um bocadinho uma distorção antiga e aumentar a liquidez e o rendimento mensal disponível em ano pandémico e que se espera de retoma, diminuindo-o correspondentemente no ano seguinte. A redução é de louvar, já deveria ter sido feita há mais tempo, antes da pandemia e quando se mantiveram as taxas e os escalões do IRS sem qualquer atualização pela inflação. Ambas as medidas podem proporcionar algum aumento do consumo, o que de certa forma é incongruente com o agravamento de 50% do imposto de selo no crédito ao consumo que se mantém. O impacto no aumento do consumo tenderá a ser mais relevante quanto mais relevante for a redução das taxas de retenção na fonte de IRS, cuja concretização pode de facto contribuir, na medida da alteração, para o aumento do rendimento mensal disponível das famílias em 2021. O IVAucher também terá impacto no consumo, ainda que sectorialmente, mas encontra-se ainda por conhecer a sua regulamentação e a sua complexidade poderá comprometer o objetivo proposto. E desconfio que o IVA não deveria servir para dar vauchers…

Na verdade, a redução da taxa de retenção não se trata de um verdadeiro alívio fiscal, mas de uma mera medida de tesouraria. Considera que deveriam ser adotadas medidas de alívio fiscal das famílias?
A redução das taxas de retenção na fonte de IRS que foi anunciada como um alívio fiscal para as famílias visa aproximar o montante do imposto cobrado no ano em que os contribuintes auferem os rendimentos ao montante do imposto que é efetivamente apurado e devido no ano seguinte. Essa diferença é financiamento do Estado e é de tal maneira relevante que já deve um dos quatro maiores” impostos” portugueses, razão pela qual há muito se deveria ter começado a resolver este problema. A redução da retenção vai-se traduzir claro em maior ou menor medida, num aumento do rendimento disponível mensal das famílias. Não havendo outras medidas que se traduzam em diminuições reais do imposto não há, na verdade, por esta via, um verdadeiro alívio fiscal real para as famílias. A redução da retenção na fonte é uma espécie de nova moratória fiscal…, mas que, em qualquer caso, é de aplaudir. Um verdadeiro alívio fiscal das famílias teria passar por alterações mais profundas à atual tributação, em sede de IRS, cujas taxas progressivas aplicáveis à generalidade dos rendimentos de trabalho – até 53% quando acrescidas da taxa adicional de solidariedade – se encontram muito desfasadas das taxas liberatórias aplicáveis a outros rendimentos passivos e, principalmente, de limiares aceitáveis nos escalões a que se aplicam. A economia tem de crescer e as despesas têm de diminuir para que os impostos possam baixar e estes tem de baixar também para seremos competitivos. Como se faz isso?

Continua a defender um imposto europeu muito baixo mas transversal e amplo sobre a poupança das pessoas físicas, consignado à liquidez necessária ao combate à pandemia?
Este imposto europeu e transversal foi uma ideia que me ocorreu muito antes de a União Europeia se predispor a subvenções diretas e, de certa forma, à mutualização da dívida. Falei num covid tax de salvação europeia com o objetivo de gerar a liquidez necessária para o combate ao vírus e à reconstrução europeia, sem aumentar a dívida dos países mais endividados, como o nosso. Há que salvar a nossa a capacidade de endividamento e o financiamento, presente e futuro, dos países mais afetados e mais pobres. Resolver o problema com mais dívida em países muito endividados, como Portugal, não podia ser solução única. Hoje vejo esse imposto mais adequado para uma amortização direta da dívida pública passada, mais próxima da ideia da solução do shot-tax proposto por Miguel Cadilhe há alguns anos e que serviu de inspiração. A outra inspiração veio-me do general Ramalho Eanes, quando disse que dava o ventilador aos mais novos.

E ao nível da manutenção do emprego deviam ser reforçados os incentivos fiscais?
É o crescimento da economia que estimula o crescimento do emprego. A manutenção de empregos que assenta em subsidiação é uma solução imediata, mas não é boa. Não contribui para o crescimento, nem do emprego nem da economia. A isenção de TSU aprovada em alguns casos durante a primeira fase da pandemia, essa sim, poderia apoiar fortemente a manutenção do emprego a curto prazo. O problema é que causa também um rombo elevado nas contas da Segurança Social, que não são boas.

Este é um Orçamento com contribuições extraordinárias a continuarem a ser aplicadas de forma permanente. Com a crise provocada pela Covid-19, antecipa que este tipo de contribuições vieram para ficar?
Infelizmente sim, pelo menos enquanto os tribunais não se debruçarem sobre novos argumentos. Se se mantiveram e criaram novas contribuições, muitas pretensamente de carácter extraordinário, não parece que seja agora em crise pandémica que as mesmas vão deixar de ser mantidas. Mas as crises que vivemos não podem justificar atropelos. Mesmo sendo tais contribuições financeiras extraordinárias são também sectoriais, incidindo apenas sobre determinados contribuintes. E devem servir as finalidades que alegadamente as justificam ligadas a externalidades do respetivo sector e não serem tratadas, a final, como receita geral do Estado e substitutiva de impostos gerais e comuns. Hoje, em conjunto, já devem ser a quarta ou a quinta maior receita de “impostos” em termos de volume da receita. Há contribuições existentes e futuras para tudo e mais uma par de botas … sobre o sector energético, para o audiovisual, sobre a indústria cosmética, sobre a indústria florestal (esta ainda não), a indústria farmacêutica, sobre os fornecedores de dispositivos médicos, os supermercados…

… o sector bancário tem as contribuições para o sector bancário e as contribuições para o fundo de resolução e, agora, mais um novo adicional.
Os tribunais têm sido sensíveis à tese de acordo com a qual estas contribuições têm justificação constitucional própria, quando não deixam de ser prestações coativas e unilaterais, como os impostos. Não quero discutir aqui a bondade da tese, mas do ponto de vista dos resultados que implica e da política tributária que admite e que é um desastre. No tempo do manual do professor Sousa Franco, os tributos parafiscais ou eram impostos ou eram outra coisa qualquer, mas quando tinham as características de impostos seguiam as suas regras. O contribuinte tem mesmo de ser protegido desta parafiscalidade voraz, de passar ao primeiro lugar! Espero que os tribunais superiores, incluindo o constitucional, sejam mais audazes e percebam o problema, mormente quando estes tributos não estão sequer individualizados, nem devidamente orçamentados, pelo menos nos termos que a Constituição e outras leis orçamentais impõem, desconhecendo os deputados, quando anualmente aprovam a sua liquidação e cobrança, a sua existência e a receita que geram, não os autorizando adequadamente.

Na especialidade foi discutida mais uma contribuição extraordinária, desta vez sobre o sector segurador. Um orçamento marcado por forte aumento da despesa devido à pandemia, concorda que os sectores em melhores condições deveriam contribuir mais?
Foi de facto uma nova iniciativa, do PCP, mas que não foi aprovada. Queria uma nova contribuição, agora sobre o sector segurador, com o argumento de que as seguradoras tiveram uma redução da sinistralidade em 2019. De forma retroativa ao que parece, o que a Constituição não permitiria também. Todos estes novos tributos e contribuições trazem associado um enorme contencioso. São as mais das vezes uma mera forma de arranjar receitas adicionais, fora dos impostos tradicionais e para finalidades gerais, sem que seja a generalidade dos contribuintes eleitores a pagá-las. É mais fácil circunscrevê-las a um sector específico ao qual se atribuem externalidades negativas e outras justificações e que permitem facilmente justificação na sua consignação para alegados fins meritórios específicos. As despesas deixam de ser suportadas pelos nossos impostos mais gerais e comuns, o que tem também um efeito anestesiante porque estas novas contribuições são bem menos controladas que os impostos gerais, ainda que se traduzam no mesmo. Olhe que o mesmo raciocínio se aplica ao aumento absurdo das multas de trânsito pela utilização do telemóvel e que não param de aumentar. Tanto quanto se saiba, a sinistralidade não tem aumentado, mas as multas continuam a subir. O cidadão-contribuinte precisa mesmo de ser protegido e de passar ao primeiro lugar.

Qual é a maior incerteza sobre o OE2021? Quais os principais riscos que antecipa?
A recessão económica em que nos encontramos pode não estar a ser corretamente refletida nos indicadores económicos de taxa de crescimento/decrescimento do PIB. Há miséria escondida, há efeitos de médio e de longo prazo decorrentes de alterações nos hábitos de consumo que podem diminuir a velocidade e a intensidade da retoma. Corremos algum risco de a retoma ser menor do que se antecipa e bem mais lenta. Há efeitos que poderão perdurar no tempo como a retração do turismo internacional…

Com a segunda vaga da pandemia e novas quebras na atividade, nomeadamente das empresas dos sectores da restauração, comércio e turismo, vão ser necessárias novas medidas de apoio a estes sectores? Como vê as alterações no OE?
As medidas que refere não são propriamente do OE 2021, vêm de decisões avulsas já antes anunciadas, como é o caso do pagamento de salários em lay-off. Têm um enorme efeito na despesa pública e, a prazo, nos impostos dos cidadãos e das empresas, aqui incluindo as faltas justificadas nas pontes e em dias de recolher obrigatório e outros de impedimento de trabalho. Não se tem por esta via legislativa sacrificado apenas as contas do Estado, mas também as das empresas.

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