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Entre a Arquitetura e a Música: a reabilitação e as cidades criativas

Ora, se a música e a arquitetura estão relacionadas, então também o desenvolvimento das cidades está intimamente relacionado com tempo e ritmo, que as determinam. Os ritmos das cidades, não são mensuráveis pelo volume do edificado, mas pelos impactos sociais que inferem na vida quotidiana dos seus habitantes, no desenvolvimento do conforto e na melhoria da qualidade de vida.
19 Fevereiro 2021, 07h15

A analogia entre a arquitetura e a música, é algo de que já se falou muito desde a Antiguidade Clássica. O racionalismo matemático, de acordo com de Zara (2007) “ecoava a harmonia de Apolo e das suas musas e a estrutura arquitetónica do cosmos, humano e mundano” – tradução livre.

De acordo com Rabelo (2007), para os Gregos, os quatro ramos do conhecimento que constituíam o Quadrivium – a geometria, a aritmética, a astronomia e a música – definiam a grande área do conhecimento, a Matemática. Partindo de Fornes (2016), lemos que, para Pitágoras, a matemática era a ciência que estudava os números e as suas relações com o mundo. A harmonização de distintos ambientes espaciais tendo em conta as proporções formais e sonoras do edificado poderia permitir o desenvolvimento de sensações de bem-estar e conforto aos habitantes desses espaços. Também Santo Agostinho – filósofo e doutor da Igreja – terá afirmado que a música e arquitetura eram como “ciências irmãs” (Zara, 2007).

Ao longo da história verifica-se que a analogia entre as duas disciplinas – Arquitetura e Música – inspirou arquitetos e músicos, nas suas edificações e composições, respetivamente.  Tanto a música como a arquitetura garantem as regras que veiculam a sua composição, através das “divinas proporções numéricas” (Fornes, 2016). Conforme refere Rabelo (2007), Vitrúvio, em De Architectura Libri Decem, demonstrou “a importância das proporções numa obra arquitetónica”.

Conforme refere Fornes (2016), a partir de Beck (1999), um dos exemplos desta analogia é a Ave Regina Coelorum de Marchetto de Pádua (c. 1325), inspirada na arquitetura e frescos de Giotto da Capela de Scrovegni (c.1305) em Pádua. Também a peça “Metastaseis” (1954) de Iannis Xenakis (1922-2001), de acordo com Rabelo (2007) e Fornes (2016), cumpre a referida analogia – como o próprio Xenakis refere na sua obra Musique, architecture (1976)  – tendo possivelmente servido de modelo ao Pavilhão Philips de Le Corbusier, para a Exposição Internacional de Bruxelas em 1958 (IRCAM, 2007; Les amis de Xenakis, 2014).

Forbes (2016) dá ainda como exemplo, o Museu Judaico de Berlim (1993- 1998), da autoria do arquiteto Daniel Libeskind, inspirado na Ópera SchoenbergMoisés e Aaron” (1932), que segundo o autor, demonstra as relações estabelecidas entre os domínios da arquitetura e da música. Do mesmo modo, de acordo com Fornes (2016), não conseguimos dissociar do canto gregoriano, as suas “texturas” e os seus “tempi”, dos espaços “reverberantes grandiosos”, onde se praticavam.

Na arquitetura clássica, os gregos nos seus edifícios procuravam estabelecer uma relação harmónica com a natureza e com o ser humano, deste modo fizeram uso simbólico dos números e das proporções matemáticas para o dimensionamento do edificado, nomeadamente nos diâmetros das colunas. Também a sequência de Fibonacci foi muito utilizada tanto na música como na arquitetura (Rabelo, 2007). A harmonia das proporções e das sequências que agradam ao ouvido na música, equiparam-se à harmonia da percepção do olhar, na arquitetura, referem os mesmos autores.

De acordo com Rabelo (2007), para Le Corbusier, o seu desenho arquitetónico composto por tramas geométricas e módulos baseava-se “nas proporções da secção áurea e dos números de Fibonacci” que “constituíam a base dos seus desenhos”. Por isso torna-se possível  afirmar que – de acordo com Costa – “a música está na arquitetura, nos seus ritmos, nas suas proporções, nas suas escalas, no seu desenho, na sua geometria, nas suas cores” interferindo com o território na tentativa de cumprir uma derradeira harmonia (mesmo que, tantas vezes, seja utópica).

Ora, se a música e a arquitetura estão relacionadas, então também o desenvolvimento das cidades está intimamente relacionado com tempo e ritmo, que as determinam. Os ritmos das cidades, não são mensuráveis pelo volume do edificado, mas pelos impactos sociais que inferem na vida quotidiana dos seus habitantes, no desenvolvimento do conforto e na melhoria da qualidade de vida.

A exemplo das cidades do Porto e Guimarães, Capitais Europeias da Cultura, em 2001 e 2012, respetivamente, foram realizadas várias intervenções nomeadamente a requalificação do espaço público dos centros históricos (Oliveira, 2013) e a criação de novas centralidades urbanísticas estruturadas em novos edificados com função cultural, que se tornaram estruturantes no desenvolvimento dessas cidades.

Conforme refere Oliveira (2013), pensar o (re) desenho dos centros das cidades coloca em evidência as dicotomias das práticas de reabilitação: “uso quotidiano versus sazonal; a reinterpretação do património versus musealização; memória em construção versus tradição”, explicitando o quão relativo são os fundamentos para a significação do espaço público na contemporaneidade.

Richards & Palmer (2010) nota que as cidades contemporâneas enfrentam hoje duas escolhas: ou desenvolvem-se a fim de dar resposta ao ritmo da mudança global ou resistem ao ímpeto da transformação e correm o risco de estagnar. As intervenções arquitetónicas confrontam-se por isso, com múltiplos antagonismos ou dicotomias,  que “colocam em questão a natureza essencial do seu ser habitado” (Oliveira, 2013).

De acordo com Oliveira (2013), a identidade, a história e a preservação da memória são postas em confronto com as necessidades de consumo. A autora reflete se de facto a história e a identidade das cidades funcionam como estratégia “fetichista” ou servem de referencial à construção identitária de um novo tecido urbano. “Falamos de memória e de consumo — e de consumo da memória” (Oliveira, 2013). O exercício das práticas em Arquitetura podem (e devem) dar resposta às distintas necessidades sociais e económicas dos habitantes das cidades.

Na crónica publicada no Jornal Económico, “O bem é o caminho, o lugar de encontro é a praça” (Goes & Freitas, 24 de novembro de 2020), considera-se que o reconhecimento do direito à habitação – consagrado na Constituição da República Portuguesa e na Declaração Universal dos Direitos Humanos – contribuiu para “os processos de inclusão e identificação com o território habitado” relacionando a qualidade do edificado com o conforto e a segurança dos seus habitantes, permitindo-lhes com maior igualdade, a emancipação social e a participação nos processos de desenvolvimento económico e social.

Se por um lado se assiste à desigualdade social, acentuada pelo atual contexto pandémico, por outro lado assiste-se à manutenção dum modelo de desenvolvimento assente na especulação  além da “descaracterização da paisagem”, colhe impactos na “degradação da qualidade de vida das pessoas” (Goes & Freitas, 2020).

De acordo com Scheidel (2017) e (Bauman, 2017) a história tem vindo a demonstrar que o perpetuar das desigualdades além de acentuar o uso da violência (como demonstração da não identificação com o espaço público), permite a entronização das hegemonias vigentes.

De acordo com Bauman & Leoncini (2018), a partir de Elias (2006), a superação das desigualdades económicas e sociais poderá contribuir para “a eliminação da agressividade e da violência”. Uma Arquitetura inclusiva e uma Cultura participada pode ser um poderoso instrumento no combate aos fenómenos de violência no seio das cidades contemporâneas.

Devolver a cidade às pessoas estará não só associado ao planeamento urbano como também às novas estratégias de mobilidade urbana. Para garantir o sucesso e o bom retorno destas políticas é necessário consubstanciar o desenvolvimento de sentimentos de pertença ao lugar que habitado.

A reabilitação urbana desempenha por isso um papel fundamental, relacionando não só aspetos estéticos e de valorização patrimonial, mas também, aspetos sociais, económicos e de participação cívica.

Devolver a cidade às pessoas é um compromisso de uma generalidade de  decisores públicos globais, que associam o planeamento urbanístico às novas estratégias de mobilidade urbana e à identificação com o território habitado.

A garantia de sucesso da reabilitação urbana, nomeadamente dos centros históricos, consubstancia-se no desenvolvimento de sentimentos de pertença ao lugar que habitam. A arquitetura e as expressões artísticas podem desempenhar uma tarefa fundamental neste processo de identificação.

Richards & Palmer (2010) referem que as cidades de modo a assegurar a sua competitividade global, têm vindo a centrar as estratégias de desenvolvimento na valorização dos seus próprios “recursos inatos” – a história, a identidade e a criatividade.

Perante os desafios causados pela globalização e pela necessidade de uma reestruturação económica, a valorização do tecido cultural e criativo das cidades e a criação de novas infraestruturas culturais, como parte integrante de uma estratégia de reabilitação urbana, pode não só potenciar a regeneração do tecido urbano envolvente e “criar prosperidade económica, social e cultural” (Richards & Palmer, 2010).

Associado às novas infra estruturas está a necessidade de uma dinamização de atividades sociais e educativas e uma programação cultural, que contemple nomeadamente, a produção de eventos artísticos, festivais de música e de artes performativas e exposições.

A diversificação da oferta cultural, a par da qualificação de novos públicos, em íntima relação com a comunidade local, poderá possibilitar o desenvolvimento de novos hábitos permitindo a envolvência da comunidade, viabilizando a identificação desta com o novo edificado, “estabelecendo novas identidades cívicas” (Richards & Palmer, 2010).

Arte e Arquitetura estão por isso inevitavelmente ligadas aos processos de participação cívica e na criação de novas urbanidades.

 

Referências:

Bauman, Z. (2017). A Arte da Vida. Lisboa: Relógio d’Água Editores

Bauman, Z. & Leoncini, T. (2018). Nados líquidos – Transformações do Terceiro Millennium. Lisboa: Relógio d’Água Editores

Beck, Eleonora M. (1999, fevereiro). Marchetto Da Padova and Giotto’s Scrovegni Chapel Frescoes. Early Music, Oxford Univesity Press, 27. 1. 7-23. http://www.jstor.org/ stable/3128589 .

Fornes, Ana Ferrer. (2016). Música y Arquitectura – Una Aproximación a la relación entre ambas disciplinas. Dissertação.

Les amis de Xenakis. (2014). L’itinéraire architectural de Iannis Xenakis (Sven Sterken): Une invitation à jouer l’espace Les années Le Corbusier. http://www.iannis-xenakis.org/xen/archi/architecture.html

 

Goes, D. & Freitas, L. (2020, novembro 24). O bem é o caminho, o lugar de encontro é a praça. Lisboa: Jornal Económico Madeira. Disponível em:

https://jornaleconomico.pt/noticias/o-bem-e-o-caminho-o-lugar-de-encontro-e-a-praca-667768

IRCAM. (2007). Iannis Xenakis. IRCAM. http://brahms.ircam.fr/iannis-xenakis.

Oliveira, Maria Manuel. (2013, abril). (re)Desenhar no coração da cidade: O Projecto de Reabilitação Urbana da Praça do Toural, da Alameda de São Dâmaso e da Rua de Santo António, em Guimarães. Monumentos. 33. 118-131. Guimarães: Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana. Fundação Cidade de Guimarães.

Rabelo, Frederico André. (2007). Arquitetura e Música – Interseções Polifónicas. Dissertação. Goiânia: Universidade Católica de Goiânia.

Richards, Greg. & Palmer, Robert. (2010). Why cities need to be eventful. Eventful Cities. 1. 1-38. Elsevier Ltd. ISBN: 9780750669870

Scheidel, W. (2017). A violência e a história da desigualdade – Da idade da pedra ao século XXI. Lisboa: Edições 70

Xenakis, Iannis. (1976) Musique, architecture. Coll. «Synthèses contemporaines». Paris : Casterman

Zara, Vasco. (2007) «Musique et Architecture: théories, composition, théologie (XIIIe-XVIIe siècles)», Bulletin du centre d’études médiévales d’Auxerre | BUCEMA, 11. Disponível em: http://journals.openedition.org/cem/1178 ; Doi: https://doi.org/10.4000/cem.1178

 

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