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“És um homem, sai daqui”. Nas fronteiras da Ucrânia, os transgénero ficam para trás

“Os guardas de fronteira ucranianos estão a impedir que até mesmo pessoas transgénero com um certificado válido que reflita o seu novo género deixem a Ucrânia, e ninguém sabe por quê”, disse a defensora de direitos humanos Olena Shevchenko. A lei marcial não se aplica a estas mulheres, que têm direitos reconhecidos como qualquer outra que nasceu com esse género.
23 Março 2022, 21h00

Quando a Ucrânia impôs a lei marcial na sequência da invasão russa a 24 de fevereiro, todos os homens entre os 18 e 60 anos foram proibidos de deixar o país para ficarem para combater o invasor russo.

Desde então, estima-se que centenas de pessoas transgénero ucranianas tentaram cruzar a fronteira. Mas o “The Guardian” foi informado por ativistas e trabalhadores humanitários que, apesar de estatuto legal que as reconhece como mulheres, dezenas foram maltratadas nas fronteiras e a sua passagem negada, com muitas a temer pelas suas vidas caso o regime transfóbico da Rússia assuma o poder.

“Os guardas de fronteira ucranianos despem-te e tocam-te em todos os lugares”, disse Judis, uma das mulheres transgénero que viu a sua passagem a ser negada para a Polónia a 12 de março. “Podes ver nos seus rostos que estão a perguntar-se ‘o que és?’ como se fosses fosse algum tipo de animal ou algo do género”.

Embora a certidão de nascimento a defina como mulher — não havendo razão para que não possa passar com as milhares de mulheres que atravessam as fronteiras ucranianas em segurança todos os dias — após uma longa e humilhante busca que a deixou desesperada e com medo, os guardas de fronteira determinaram que era um homem e que estava, por isso, submetida à lei marcial.

Na sala de exame, um dos guardas disse-lhe: “és um homem, por isso sai daqui”, acrescentando que deveria estar agradecida por não terem chamado a polícia, embora tenha um documento legal, válido, que atesta o seu género feminino. “Vai para a guerra”, atiraram.

Alice, 24, contou uma experiência semelhante. Ela e a sua esposa, Helen, uma jovem de 21 anos que se identifica como não-binária, foram paradas por guardas de fronteira durante uma tentativa de atravessar para a Polónia.

“Eles levaram-nos para um prédio perto da fronteira”, conta. “Havia três polícias na sala. Disseram-nos para tirarmos os nossos casacos. Viram as nossas mãos, braços, o pescoço para ver se eu tinha a maçã de Adão. Eles tocaram nos meus seios. Depois de nos examinarem, os guardas de fronteira disseram que éramos homens. Tentámos explicar a nossa situação, mas não se importaram”.

De acordo com a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexuais, a Ucrânia ocupa o 39º lugar entre 49 países europeus pelo tratamento geral às pessoas LGBTQ+. O casamento gay não é permitido, não há leis antidiscriminação para proteger as pessoas LGBTQ+ e, desde 2017, as pessoas transgénero foram legalmente reconhecidas, mas devem passar por uma extensa observação psiquiátrica e um longo processo burocrático, destaca o jornal britânico.

“Tecnicamente, a lei [marcial] também se aplica a pessoas transgénero , incluindo homens transgénero certificados e mulheres transgénero que não mudaram os documentos. Mas parece que os guardas de fronteira ucranianos estão a impedir que até mesmo pessoas transgénero com um certificado válido que reflita o seu novo género deixem a Ucrânia, e ninguém sabe por quê”, disse a presidente da Insight (uma das poucas organizações do país que trabalha com pessoas transgénero), Olena Shevchenko, 39.

A abordagem discriminatória e hostil da Rússia aos direitos LGBTQ+ está a aterrorizar a comunidade transgénero da Ucrânia. “Muitas das pessoas transgénero com quem conversei na Ucrânia têm medo da Rússia”, disse o funcionário da Safebow (uma organização que ajuda a evacuar pessoas vulneráveis para locais seguro) Bernard Vaernes. Em 2013, na Federação de Putin, foi aprovada uma lei que proíbe a promoção da homossexualidade a menores e, em 2021, uma emenda na Constituição proibiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

“Quero ser livre para fazer o que quero na vida”, afirmou Judis. “Vou tentar atravessar novamente a fronteira porque tenho o direito de sair e viver. E não vou ficar calada. Não serei prisioneira”.

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