Poderá parecer absurdo afirmar que os portugueses têm uma atitude complacente em relação à promiscuidade dos seus representantes políticos, tendo em conta que os casos identificados costumam ter uma cobertura mediática generosa (de que é agora exemplo Miguel Alves) e a opinião pública manifesta a sua indignação durante algum tempo. Contudo, os pequenos desabafos de indignação estão longe de significar forte consciência cívica ou desconforto ético da população.

Casos gravíssimos de corrupção endémica que resultam da prolongada partidarização do país só são assunto enquanto são a notícia do dia, podendo servir de coloquial tema de conversa enquanto se despacha o café e o pastel de nata. Mas basta que o caso seja purificado pela linguagem legalista predominante em Portugal, para que deixe de suscitar dúvidas aos portugueses. Veja-se a linguagem que a ministra Mariana Vieira da Silva utilizou para justificar a contratação de um recém-licenciado, sem experiência profissional, como seu Adjunto, com um vencimento de cerca de 4.000 euros. A legislação “diz tudo o que há a dizer” e ficamos assim esclarecidos em tom entediante e involuntariamente defensivo.

Ainda assim, mais grave do que ficar-se conformado com os desfechos legais e explicações processuais, é cobiçar-se a situação daqueles que abusam do exercício das suas funções públicas para benefício próprio ou de terceiros. E no meio das justas críticas, lá se vão ouvindo alguns desabafos “só eu é que não tenho amigos destes”.

Um tema que pode ser revelador de alguns traços da psicologia nacional em relação a temas com enorme impacto financeiro é o da relação do Estado com a TAP.  Veja-se como a opinião pública se tem mantido relativamente passiva perante uma estratégia monumentalmente ruinosa e como se deixou anestesiar pelo vago enunciado do “interesse estratégico”, servindo os caprichos e dogmas dos socialistas.

Contudo, houve um fragmento neste longo processo que sobressaiu em termos de mediatismo. Quando foi noticiada a possibilidade de aquisição de 50 viaturas para renovar a frota automóvel dos administradores da TAP, a indignação não se fez esperar. Mesmo assumindo que tal decisão seria uma provocação moralmente condenável, parece algo desproporcional que esse montante gere mais indignação do que o prejuízo no valor de milhares de milhões causado pelo plano de reestruturação levado a cabo por Pedro Nuno Santos. Neste e noutros exemplos, fica evidente que os portugueses reagem mais emocionalmente quando o objecto é mais tangível, seja um automóvel ou uma remuneração acima da média.

O país tem enfrentado muitas dificuldades produtivas ao longo da sua história e nem sempre é fácil contrariar maus hábitos e algumas aspirações de enriquecimento fácil entre os portugueses para escapar à estagnação e ao lento aumento de rendimentos – basta notar as expectativas depositadas em jogos de sorte e azar. Mas uma transformação no domínio da economia tem de assentar numa transformação dos quadros mentais da população.

Uma significativa parte da população terá avaliado positivamente a atribuição de cheques de 125 euros e o ilusionismo operado a nível das pensões, sobretudo por motivos de iliteracia financeira. Alguns avaliarão de forma negativa porque acham que “devia ser mais” ou “podia ser todos os meses”. A iliteracia financeira de que se aproveitam alguns criminosos que batem à porta das pessoas, com esquemas ardilosos para delapidar poupanças de idosos, é a mesma iliteracia que é facilmente instrumentalizada pelo partido do poder (curiosamente um partido cuja eleição depende essencialmente do voto da terceira idade).

E ainda que os idosos possam ser uma presa fácil de tais esquemas, importa reconhecer que a iliteracia financeira e alguns pressupostos penalizadores do desenvolvimento são transversais a todas as gerações. Daí que talvez fosse importante dedicar uma atenção reforçada às matérias de ética e de economia nas célebres aulas de Cidadania e Desenvolvimento. Uma formação dedicada ao desenvolvimento sustentável deve incentivar a responsabilização individual, o respeito pela propriedade dos outros, o reconhecimento do sucesso do próximo e a protecção daquilo que é comum. Passa também pela valorização da poupança em vez da usual ostentação consumista, tantas vezes dependente do recurso a créditos, e pela consciência de que o ser humano desenvolve as suas actividades e supre as suas necessidades sempre num contexto de recursos escassos. E, acima de tudo, “não há almoços grátis”.

É sintomático que a sociedade portuguesa continue a premiar, ou a dar o benefício da dúvida, a quem mantém o país numa vala de estagnação em que as clientelas partidárias prosperam e o número de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza aumenta. Dão-lhes o benefício da dúvida, algumas delas, talvez por simples receio da mudança. Mas a única governabilidade que resulta de lhes atribuir maiorias parlamentares é a governabilidade que executam em favor de si próprios.

Numa fase de crescente sufoco financeiro, em que as famílias se deparam com dificuldades para fazer face a despesas básicas, de habitação e de alimentação, a adversidade pode servir para reflectir sobre o modelo económico e ético e sobre o tipo de conhecimentos e comportamentos que cultivamos em nós e nas gerações mais jovens, de forma a vencer um ciclo de confiança infundada nas boas intenções do governo e de promiscuidade política que prospera em total impunidade.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.