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Mário Figueiredo: “EUA têm ambiente mais favorável à transferência de conhecimento entre academia e empresas”

Em entrevista ao Jornal Económico (JE), o professor catedrático no Instituto Superior Técnico e especialista na área da Inteligência Artificial, Mário Figueiredo, assinala que a maior porosidade entre o campo académico e empresarial, e também o capital de risco, têm sido fatores que explicam a vantagem norte-americana face à realidade europeia.
26 Maio 2025, 07h00

Os Estados Unidos têm tido vantagem sobre a Europa no que diz respeito à Inteligência Artificial. Uma maior porosidade entre o campo académico e empresarial, bem como o capital de risco, têm sido fatores que explicam a vantagem norte-americana face à realidade europeia, salienta Mário Figueiredo, professor catedrático no Instituto Superior Técnico e especialista na área da Inteligência Artificial, em entrevista ao Jornal Económico (JE).

Mário Figueiredo tem entre as suas áreas de investigação a aprendizagem automática, o processamento e análise de imagens e a otimização, e desde 2014 integra a lista anual de ‘Highly Cited Researchers (Clarivate Analytics)’.

A Inteligência Artificial tem sido alvo de investimentos avultados que vão desde o campo empresarial até ao domínio dos Governos. A título de exemplo, os Estados Unidos anunciaram, em janeiro, o lançamento do programa Stargate, que prevê um investimento de 500 mil milhões de dólares (cerca de 430 mil milhões de euros) em Inteligência Artificial.

Este programa resulta de uma joint venture que reúne parceiros como a OpenAI, o Softbank, a Oracle e a MGX. No âmbito do Stargate, pretende-se investir em infraestruturas ligadas à Inteligência Artificial e também em centros de dados (data centers). Um dos data centers já está a ser construído no Texas.

A União Europeia não se tem deixado ficar para trás, uma vez que, em fevereiro, anunciou o lançamento do ‘InvestAI’, que mobiliza um investimento de 200 mil milhões de euros em Inteligência Artificial, dos quais 20 mil milhões de euros são destinados às chamadas gigafactories.

No âmbito desta iniciativa europeia, está prevista a construção de quatro gigafactories, especializadas nos modelos de Inteligência Artificial mais complexos e de maior dimensão. A aposta passará por áreas como a medicina e a ciência. Está previsto que estas gigafactories tenham cerca de cem mil chips de Inteligência Artificial de última geração.

O investimento inicial por parte da Comissão Europeia para o ‘InvestAI’ virá de programas que já existem, como, por exemplo, o Digital Europe Programme, o Horizon Europe e o InvestEU.

Ao nível empresarial, a Meta, a Amazon, a Google e a Microsoft têm intenção de investir, em 2025, cerca de 320 mil milhões de dólares (290 mil milhões de euros) em tecnologias ligadas à Inteligência Artificial, salienta a CNBC.

A Amazon tem um plano que prevê um investimento de 100 mil milhões de dólares (90,6 mil milhões de euros), enquanto a Microsoft pretende mobilizar uma verba de 80 mil milhões de dólares (72,5 mil milhões de euros). A Alphabet (proprietária da Google) tem um investimento previsto de 75 mil milhões de euros (67,9 mil milhões de euros), enquanto a Meta deve mobilizar entre 60 e 65 mil milhões de dólares (de 64,3 a 58,9 mil milhões de euros).

Estados Unidos mais avançados que a Europa

No meio de todo este investimento, os Estados Unidos têm tido vantagem sobre a Europa, salienta Mário Figueiredo. Isso explica-se por uma série de fatores. Não convém esquecer a China, que, ao nível desta tecnologia, não deixa nada a desejar quando comparada com os Estados Unidos, salienta o professor do Instituto Superior Técnico.

“Nos Estados Unidos, as empresas são muito grandes e estão a desenvolver modelos de Inteligência Artificial que são muito grandes, muito caros e muito avançados. Se injetarem mais dinheiro, avançam mais depressa e com modelos maiores. […] Nos Estados Unidos, existe mais investigação nas universidades nesta área, há mais colaboração entre as universidades e as empresas, e existe um ambiente tecnológico mais favorável à transferência de conhecimento da academia para as empresas do que na Europa”, explica Mário Figueiredo.

Outro fator que ganha relevo é o facto de os Estados Unidos serem um país, ao contrário da Europa e da própria União Europeia, que junta “muitos países, diferentes línguas e diferentes governos”, assinala Mário Figueiredo.

“Depois, cada país tem as suas empresas de investimento e de venture capital. [Na Europa] é tudo muito mais segmentado e muito mais fragmentado. E isso é um aspeto que cria sempre algum entrave”, refere Mário Figueiredo.

O professor do Instituto Superior Técnico diz ainda que existe uma diferença impactante entre a Europa e os Estados Unidos, que passa pelo facto de os norte-americanos possuírem “um mercado integrado muito grande”, em que as empresas que acabam por ser bem-sucedidas “arrancam com muito mais força” porque desenvolvem a sua atividade num país de 340 milhões de habitantes.

“Os Estados Unidos são um dos países mais ricos do mundo. Por outro lado, na Europa, uma empresa de um país que arranque num mercado local e que depois se estenda na Europa, e seja bem-sucedida, precisa primeiro de se mobilizar na Europa. Precisa de se desenvolver em várias línguas. Não basta só o inglês. Precisa de conquistar mercados. Precisa de ter força de venda nesses outros países para começar. É muito mais complicado uma empresa grande crescer rapidamente na Europa do que uma empresa grande crescer rapidamente nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, depois da empresa ganhar dimensão, é mais fácil globalizar-se; é mais rápido, tem a vantagem competitiva do facto de ter arrancado num país que tem um mercado enorme e onde todos falam a mesma língua”, diz o professor do Instituto Superior Técnico.

Mário Figueiredo assinala que entre a Europa e os Estados Unidos existem também “diferenças culturais” que levam a que os Estados Unidos tenham mais tradição ao nível do capital de risco.

“Os Estados Unidos têm mais capital de risco do que na Europa. Outro fator muito importante reside no meio académico. […] Nos Estados Unidos, existe uma porosidade muito grande entre o mundo académico, as universidades e as empresas. É muito fácil fazer-se transferência de conhecimento. Os professores colaboram muito com as empresas, e os estudantes de doutoramento e de mestrado vão muito às empresas fazer estágios e voltam. As pessoas conhecem-se todas. As pessoas da indústria conhecem as da academia. E isso é extremamente bom para aumentar a velocidade com que os avanços da investigação passam, depois, para as empresas”, descreve Mário Figueiredo.

Europa deve apostar em computação

Questionado sobre que medidas a União Europeia poderia tomar para ajudar as empresas que vão ganhando alguma dimensão no campo da Inteligência Artificial, Mário Figueiredo salienta a importância de existir investimento ao nível da computação.

“Em áreas que precisam de muita computação, como os modelos de linguagem, a Europa pode ajudar com computação. Investindo recursos de computação que permitam a essas empresas, sem ter de investir maciçamente a níveis que não são fáceis de atingir na Europa, principalmente com dinheiro privado, acesso a recursos de computação avançados. Isso é extremamente importante”, defende o professor do Instituto Superior Técnico.

Apesar do atraso da Europa face aos Estados Unidos no campo da Inteligência Artificial, Mário Figueiredo salienta que a Europa não fica nada atrás dos Estados Unidos em áreas mais de nicho, como, por exemplo, o uso da Inteligência Artificial no campo da ciência.

“Tivemos um exemplo, que foi o Prémio Nobel da Química do ano passado, com o trabalho na DeepMind. É uma empresa que pertence à Google, mas que está desenvolvida em Londres”, salienta Mário Figueiredo.

Referindo-se ainda à Europa, Mário Figueiredo menciona que o continente acaba por se destacar na aplicação de Inteligência Artificial que não é tão visível ao público.

“Mas é visível depois nos produtos. Por exemplo, a pessoa ir ao hospital e o médico referir que fez um exame e que tem disponível um sistema de Inteligência Artificial que ajuda a fazer o diagnóstico”, explica Mário Figueiredo.

“Eu acho que é importante que as pessoas saibam que a utilização de Inteligência Artificial, em áreas científicas, como, por exemplo, a medicina, tem um impacto muito grande”, reforça o professor do Instituto Superior Técnico.

China tem ganho terreno na Inteligência Artificial

Mário Figueiredo, apesar de sublinhar que nesta área é preciso ver as coisas com ‘um grão de sal’, considera que, ao nível da Inteligência Artificial, a China “não está muito longe” dos Estados Unidos.

O professor do Instituto Superior Técnico refere que, em áreas que exigem o uso de grandes quantidades de dados, a China tem capacidade a esse nível. “São um país gigantesco. Têm a vantagem da escala numa maior dimensão face aos Estados Unidos. Obviamente que o PIB per capita da China é mais baixo [face aos Estados Unidos], mas a China é muito avançada e muito desenvolvida tecnologicamente. A China tem muito investimento na Inteligência Artificial. É uma área em que querem ser líderes. Os Estados Unidos e a China estão à frente [nesta área]; não sei se a par, mas diria que há mais inovação nos Estados Unidos, em termos de inovação qualitativa, ou seja, em coisas que sejam mesmo novas”, diz Mário Figueiredo.

Apesar da vantagem qualitativa dos Estados Unidos em comparação com a China, Mário Figueiredo refere que a China tem também a capacidade de, pouco tempo depois, “estar a fazer igual ou melhor, ou parecido e mais barato”, sendo o DeepSeek um bom exemplo dessa realidade.

“Não foi [a China] que inventou os Large Language Models (LLM), não foram eles que inventaram os modelos para gerar imagens, não foram eles que inventaram nada dessas coisas novas. Mas eles têm-nas tão boas ou melhores em termos de desempenho por dólar, digamos assim”, refere Mário Figueiredo.

Mário Figueiredo alerta ainda que qualquer país que tenha ambição de ser abrangente em termos económicos e que queira ter presença nos serviços e nas indústrias “não pode deixar de apostar” em Inteligência Artificial. “Porque aumenta a eficiência e a rapidez com que se fazem as coisas”, refere o professor do Instituto Superior Técnico.

“Não quer dizer que todos os países tenham de investir em investigação em Inteligência Artificial, mas vão ter de ser utilizadores, vão ter de estar atentos, vão ter de saber o que existe, o que se pode utilizar, vão ter de saber como é que podem integrar a Inteligência Artificial na sua economia, no modo de funcionamento das empresas”, descreve o docente do Instituto Superior Técnico.

Agentes devem ser a nova trend

Mário Figueiredo salienta que uma das tendências que têm sido muito discutidas recentemente no campo da Inteligência Artificial são os agentes.

“[Os agentes] começam, em certa medida, a ser algo que substitui de alguma forma algumas tarefas realizadas por humanos. Ou pelo menos que ajudam os humanos a fazer tarefas com alguma autonomia da parte da Inteligência Artificial. Não é simplesmente responder a perguntas ou seguir ordens; [os agentes] têm alguma autonomia para fazer certas coisas com vários passos”, explica Mário Figueiredo.

Questionado sobre se estamos assim tão distantes de termos os agentes a substituírem os humanos, por exemplo, no atendimento em locais como os hospitais, Mário Figueiredo considera que “se a coisa é bem montada e bem funcional”, acredita que “não estamos muito longe” de isso acontecer.

“Eu até diria que, do ponto de vista técnico, até estamos perto de isso ser possível”, salienta Mário Figueiredo.

“Agora, se isso é vantajoso do ponto de vista global, quer para a sociedade, quer para o próprio hospital, para as pessoas que lá vão, não terem do outro lado uma pessoa com quem possam olhar nos olhos e ter uma relação normal de diálogo entre duas pessoas, não é claro na minha cabeça como é que o mercado vai reagir a essas questões. Quanta importância é que as pessoas dão a ser atendidas por outra pessoa, quanto é que isso vale?”, reflete o professor do Instituto Superior Técnico.

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