O EuroBic alertou no início desta semana o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) e a Unidade de Informação Financeira (UIF) da PJ para operações suspeitas referentes a transferências da Sonangol de 57,4 milhões de dólares (52 milhões de euros), realizadas há mais de três anos, para uma conta bancária no Emirates NBD, no Dubai, titulada pela Matter Business Solutions DMCC. Uma consultora que o banco português suspeita agora pertencer a Isabel dos Santos, após a investigação internacional ‘Luanda Leaks’ ter revelado, no domingo passado, mais de 715 mil ficheiros que detalham esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido, Sindika Dokolo, que estarão na origem da fortuna da família, calculada em mais de dois mil milhões de euros.
Em causa estão operações em nome da petrolífera angolana, realizadas através do banco português um dia após a empresária angolana ter sido exonerada da Sonangol, que são agora detalhadas na investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ). O Jornal Económico sabe que as revelações do ‘Luanda Leaks’ acabaram por ditar a comunicação ao Ministério Público (MP) e à PJ de operações suspeitas. O alerta foi feito no âmbito da lei 83/2017 que fixa medidas de combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, e que prevê que estes alertas devem ser dados sempre que “as entidades obrigadas saibam, suspeitam ou tenham razões para suspeitar que certos fundos provêm de atividades criminosas”. Segundo esta lei, devem ser comunicadas às autoridades operações suspeitas tentadas, que estejam em curso ou que tenham sido executadas, o que foi o caso das três transferências de 57,4 milhões de dólares, realizadas a 16 de novembro de 2017, um dia após a saída de Isabel dos Santos da Sonangol. A investigação do ICIJ revela mesmo que, em menos de 24 horas, a conta da empresa angolana no EuroBic Lisboa, banco de que Isabel dos Santos é a principal acionista, foi esvaziada e ficou com saldo negativo no dia seguinte à demissão da empresária da petrolífera.
A comunicação do EuroBic às autoridades é sustentada com o facto de o ‘Luanda Leaks’ só agora levantar suspeitas quanto ao beneficiário efetivo da Matter Business Solutions. Segundo os novos dados, a acionista desta offshore declarada às autoridades do Dubai é Paula Oliveira, próxima e sócia de Isabel dos Santos que deverá, na realidade, ser a dona desta consultora do Dubai – e que tem associados outros nomes portugueses como o de Jorge Brito Pereira, advogado da empresária angolana e do seu principal gestor de negócios, Mário Leite da Silva, como diretor desta empresa offshore. O JE confrontou o EuroBic e a PGR com o envio da comunicação, mas até ao fecho desta edição não obteve resposta.
Área de Compliance do EuroBic passa a pente fino transferências suspeitas
Os dados revelados pelo ICIJ apontam para a possibilidade de Isabel dos Santos ter arranjado mecanismos para transferência de várias dezenas de milhões da Sonangol, que a justiça angolana estima em mais de 135 milhões de dólares, para uma empresa detida por si. Uma revelação que forçou o departamento de Compliance do EuroBic, a cargo do administrador José Azevedo Pereira desde julho de 2019, a passar a pente fino toda a documentação de suporte das transferências de 57,4 milhões para o Dubai. Esta análise já tinha sido feita após a realização das operações, em 2017, com o EuroBic a concluir, na altura, que respeitaram os formalismos e os procedimentos legais. Para o banco, as operações terão sido também legítimas face às datas e horas constantes nos documentos de transferências, cujas ordens estarão datadas de 14 de novembro, antes da exoneração de Isabel dos Santos, e terão sido processadas a 15 de novembro, dia em que foi anunciada a sua saída.
Gestor de conta de Isabel dos Santos encontrado morto
Após a divulgação do ‘Luanda Leaks’, todas estas datas, horas e outros elementos identificativos foram novamente revisitadas pelo banco. E podem mesmo vir a ser alvo de perícias da justiça no âmbito das transferências realizadas através do private banking do EuroBic, validadas pelo diretor e gestor de conta de Isabel dos Santos, que foi encontrado morto na garagem do seu apartamento em Lisboa, nesta quarta-feira. Segundo a PSP, “todos os indícios apontam para suicídio”, após uma alegada primeira tentativa a 7 de janeiro na sua casa de férias em Vila Nova de Milfontes, onde foi encontrado com ferimentos graves nos pulsos e no abdómen. Nuno Ribeiro da Cunha tinha sido constituído arguido pela PGR de Angola no processo que investiga as transferências da Sonangol. Um inquérito que tem também como arguidos Mário Leite da Silva, gestor de Isabel dos Santos; Sarju Raikundalia, ex-administrador financeiro da Sonangol; Paula Oliveira, e Isabel dos Santos que é acusada dos crimes de peculato, falsificação de documentos autênticos, abuso de poder, tráfico de influências e branqueamento de capitais.
Corte de relações comerciais com empresária
As dúvidas agora colocadas pelo EuroBic quanto ao verdadeiro beneficiário efetivo da consultora do Dubai constam, aliás, ainda que de forma indireta, no comunicado do banco do início desta semana, onde revelou que encerrou as relações comerciais com entidades controladas por Isabel dos Santos e pessoas estreitamente relacionadas com a mesma. No comunicado, a instituição liderada por Teixeira dos Santos começa por dar conta de que “os pagamentos ordenados pela cliente Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola (Sonangol) à Matter Business Solutions respeitaram os procedimentos legais e regulamentares formalmente aplicáveis” no que concerne à prevenção de branqueamento de capitais. Mas acaba por sinalizar que “face às informações vindas a público, com elementos que até esta data eram desconhecidos por este banco”, foi solicitada uma auditoria aos movimentos em causa.
A decisão de corte de relações comerciais foi tomada por receio da perceção pública de que “possa não cumprir integralmente as suas obrigações”, pelo facto de Isabel dos Santos ser um dos seus acionistas de referência, onde detém 42,5%, cuja posição, segundo o banco, está há venda e há interessados. O EuroBic quis, assim, afastar riscos reputacionais e, no limite, uma eventual fuga aos depósitos, por receios de o banco ser usado para branqueamento.
Verdadeira dona de ‘offshore’ escapou ao radar em 2017
Após a investigação do ICIJ, o EuroBic voltou a analisar os elementos identificativos destas operações que incidem, nomeadamente, nos comprovativos da identidade do cliente, do seu representante e do beneficiário efetivo, incluindo a informação para a aferição da qualidade de beneficiário efetivo, que, à data das transferências, o banco considera terem cumprido os formalismos legais. Mas a verdadeira dona da Matter Business Solutions parece ter escapado ao radar do controlo do banco que centrou, em 2017, a sua análise na documentação necessária de suporte às três ordens de transferência para o Dubai e faturas que correspondem ao pagamento das transferências. O problema é que os três nomes portugueses relacionados com a empresária angolana (Paula Oliveira, Jorge Brito Pereira e Mário Silva), que surgiram ligados a esta consultora do Dubai, não fizeram, ainda assim, soar as campainhas de alerta na primeira avaliação às operações em 2017.
Denúncia da Sonangol levou a abertura de dossiê
Todos aqueles elementos tinham, aliás, já sido revistos pelo EuroBic quando foi criado um dossiê sobre estas transferências, após uma conferência de imprensa dada a 28 de fevereiro de 2018, pelo sucessor de Isabel dos Santos à frente da Sonangol. Carlos Saturnino denunciou, na altura, haver contornos estranhos sobre pagamentos para o Dubai em serviços de consultoria. E mostrou um powerpoint em que foi exibido um total de mais de 135 milhões de dólares (123 milhões de euros) pagos durante os 18 meses de administração de Isabel dos Santos e em que 131 milhões de dólares (118 milhões de euros) – 96% de todas as consultorias encomendadas – tiveram como destino o paraíso fiscal nos Emirados Árabes Unidos. Saturnino destacou uma transferência de 38 milhões de dólares (35 milhões de euros) “a favor da Matter Business Solutions”, aludindo também “a uma carta assinada pela Presidente do Conselho de Administração e pelo CFO [Sarju Raikundalia] cessantes, a solicitar a referida transferência”. Na sequência desta denúncia, a PGR angolana abriu um inquérito-crime em setembro de 2019. Também em Portugal, depois de uma denúncia da ex-eurodeputada à procuradora geral da República, o DCIAP abriu um inquérito às operações suspeitas entre as quais as transferências da Sonangol, tal como o JE noticiou a 10 de janeiro.
Com inquéritos crime a correr nos dois países, o PGR de Angola pediu esta quinta-feira à sua homóloga, numa reunião, em Lisboa, colaboração judicial para que Isabel dos Santos e outros colaboradores portugueses sejam notificados na condição de arguidos. Caso não regressem ao país, de forma voluntária, Hélder Pitta Grós admite a emissão de um mandado de captura internacional.
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