A questão da migração para a Europa tornou-se um fator-chave das eleições para o Parlamento Europeu de junho, mas vários especialistas defendem que chamar à situação “crise” corresponde à narrativa de alguns partidos para ganhar votos.
Hein de Haas, sociólogo e geógrafo holandês cuja investigação se centra nas migrações, considera a ideia de que há uma crise migratória global como “um mito que tem de ser denunciado”.
“O nível relativo de migração mantém-se estável a nível mundial há décadas: cerca de 3% da população mundial são migrantes”, afirma no livro “Como funciona realmente a migração”, apresentado em abril em Portugal.
Segundo este especialista é preciso acabar com o “mito número um” do tema das migrações.
“Não há migração global em massa. Os partidos políticos exploram avidamente o pressuposto de que existe uma crise migratória global”, sublinhou, numa entrevista ao jornal holandês Folia.
“Os níveis de imigração variam principalmente com o crescimento económico e a escassez de mão-de-obra de um país. O nível de migração de refugiados a longo prazo também se mantém estável em cerca de 0,3% da população mundial”, garante.
“Quando uma guerra rebenta, como aconteceu há uma década na Síria ou recentemente na Ucrânia, há um grande afluxo ocasional de refugiados. Mas a longo prazo, tanto a nível global como local, não há aumento na migração de refugiados”, assegura o especialista.
A ideia de que estamos a viver uma crise é, para Hein de Haas, apenas um conceito criado pelos partidos e movimentos políticos.
“A esquerda política grita frequentemente: sim, é preciso evitar conflitos, fornecer ajuda ao desenvolvimento e combater as alterações climáticas. A direita grita que devemos fechar ainda mais as fronteiras e controlá-las com mais rigor”, mas “as taxas de migração globais têm permanecido relativamente estáveis durante décadas e não há nenhuma crise migratória”, considera.
Já em setembro passado, quando os jornais de toda a Europa anunciavam uma crise migratória sem precedentes devido a um aumento das chegadas de migrantes à pequena ilha italiana de Lampedusa, alguns analistas contrariaram o conceito.
“É um caso típico de demagogia, especialmente de populismo de direita”, afirmou o sociólogo da Universidade do Milão Maurizio Ambrosini, defendendo ser preciso “superar a especulação dramática e adotar uma política mais pragmática”.
Perante o desembarque, em apenas três dias, de cerca de 10 mil migrantes em Lampedusa, a primeira-ministra do Governo de coligação de direita e extrema-direita de Itália, Giorgia Meloni, evocou a existência de uma crise de migrantes no país, exigindo solidariedade da União Europeia e dos Estados-membros.
A situação de alarme foi considerada pelo presidente da Fraternidade Francesa, organização de combate aos discursos de ódio, como “um absurdo”.
“Em três meses, no ano passado, a Europa acolheu quatro milhões de ucranianos sem que ninguém chorasse por uma invasão migratória. Classificarmos a entrada de alguns milhares de pessoas num país como uma “submersão migratória” – como fez a líder da extrema-direita em França, Marine le Pen -, é um absurdo”, sublinhou Pierre Henry.
Também a geógrafa especializada em migração Camille Schmoll considerou, em declarações aos media franceses, que a narrativa italiana era um exagero.
“Não há sobrecarga migratória. Estamos a falar de muito poucas pessoas, na escala dos principais países anfitriões do mundo”, disse, adiantando que, a Turquia acolhe 3,6 milhões de refugiados e o Irão mais de três milhões.
“Focamo-nos em Lampedusa porque as imagens são impressionantes e porque existe um fenómeno de ‘hipervisibilidade’ ligada ao facto de a ilha ser exígua e de o centro de acolhimento estar sobrecarregado”, afirmou.
Em 2011, entraram na ilha 60 mil pessoas em poucos meses.
Ao criar “deliberadamente” um cenário de congestionamento permanente, o Governo italiano “consegue transformar esta receção [de migrantes] numa crise”, defendeu a também autora do livro “Migrações no Mediterrâneo” e diretora de estudos da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais.
“Estes episódios marítimos tornaram-se numa ferramenta de propaganda” da extrema-direita, que permite “alimentar a retórica do medo”, referiu a geógrafa Camille Schmoll.
Em termos de números, “poderíamos muito bem absorvê-los na Europa com uma melhor coordenação”, argumentou.
A instrumentalização é alimentada por “um argumento racista que acompanha imagens espetaculares mas que não revelam a realidade dos fluxos migratórios”, considerou Pierre Henry.
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