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Fragilidades do sistema financeiro mundial

Estas debilidades das bases em que se fundamentam o sistema financeiro garantem que, se nada for feito para o aperfeiçoar ou reestruturar, irá colapsar. Se será mais cedo ou mais tarde, não se consegue adivinhar, mas parece-me inquietante a total ausência de discussão sobre as mudanças que, um dia, serão inevitáveis. Uma transição ordenada e programada será sempre muito mais suave do que uma transição brusca e desordenada.
11 Maio 2020, 07h15

Em termos estritamente económicos, afinal a pandemia não foi o alfinete que rebentou a bolha financeira formada nos últimos 11 anos pelos bancos centrais, mas o malho que explodiu a bolha, partiu a mesa, e começa a abrir o chão. Apesar disso, um sistema financeiro mais robusto poderia aguentar bem tal pandemia. Não é o caso, pois o sistema financeiro mundial já vinha acumulando fragilidades há muitos anos.

Em primeiro lugar é preciso entender que, desde os acordos de Bretton Woods em 1944 que formalmente estabeleceram regras gerais para as relações comerciais e financeiras, o dólar dos Estados Unidos da América é, em termos práticos, a principal unidade de conta, bem como a primeira moeda de reserva e de transação mundial. Essa aceitabilidade geral prosseguiu incólume desde 1971 quando o dólar deixou de ser convertível em ouro. Desta forma, o dólar é a moeda com maior procura mundial. Assim, para entendermos em que se fundam as bases do atual sistema financeiro mundial, é fundamental entendermos o que é o dólar. Atualmente o dólar é, em termos práticos, uma abstração sem definição legal cuja quantidade pode ser expandida ao sabor das decisões do Federal Reserve Bank (Fed). Na atual crise pandémica, ainda mais do que nos últimos anos, o Fed tem atuado como um autêntico banco central mundial, pois tem feito aprovisionamentos de liquidez (nome eufemístico para “resgates”) a diversos bancos centrais pelo mundo fora, que por sua vez transmitem essa liquidez para a banca.

O sistema financeiro baseado no dólar apresenta claras deficiências, como a arbitrariedade da sua expansão por parte do Fed e a inexistência de fundamentos reais que suportem o seu valor. Contudo, existem grandes obstáculos à reforma do sistema, pois para além dos EUA serem a maior potência económica e militar, a maior parte do comércio e das dívidas internacionais são denominadas em dólares. Outro obstáculo para tal reforma é não se vislumbrarem alternativas que não sofram das mesmas, ou até de outras fragilidades. Por exemplo, a moeda da 2.ª maior economia, o Yuan Chinês, para além de sofrer de defeitos semelhantes aos do dólar, acresce-lhe ainda a sua difícil convertibilidade noutras moedas e o controle no fluxo de capitais característico da ditadura da República Popular Chinesa.

Estas debilidades das bases em que se fundamentam o sistema financeiro garantem que, se nada for feito para o aperfeiçoar ou reestruturar, irá colapsar. Se será mais cedo ou mais tarde, não se consegue adivinhar, mas parece-me inquietante a total ausência de discussão sobre as mudanças que, um dia, serão inevitáveis. Uma transição ordenada e programada será sempre muito mais suave do que uma transição brusca e desordenada. Talvez falte ao mundo uma Organização das Nações Unidas que organize, efetivamente, as nações desunidas. Uma das poucas vozes que bradam no deserto de ideias e visões sobre o sistema financeiro mundial é a de Paul Volcker, o presidente do Fed entre 1979 a 1987, que podemos considerar o principal responsável pelo fim das taxas de inflação anuais a dois dígitos. Em 2015, Volcker propôs um novo Acordo de Bretton Woods para estabelecer regras para orientar a política
monetária mundial. Infelizmente ninguém lhe deu ouvidos.

Vamos aprofundar um pouco mais a nossa análise, agora mais centrados no conceito de base monetária, que corresponde ao volume de dinheiro criado pelos bancos centrais, ou seja, moeda em circulação e reservas bancárias. Desde 2009, e de forma muito particular nos últimos 5 anos, os bancos centrais por todo o mundo têm aumentado em magnitudes assombrosas as bases monetárias das suas moedas, o que não se tem repercutido em aumentos preocupantes dos índices de preços ao consumidor, pois esses aumentos não têm sido canalizados diretamente
para os agentes consumidores, mas para as reservas bancárias que são aplicadas em ativos financeiros. Se, neste âmbito, entendermos inflação como a subida generalizada dos preços dos bens de consumo, podemos ficar perigosamente tranquilos porque, de facto, as taxas de inflação permanecem moderadas. No entanto, se entendermos inflação como expansão da base monetária, então a perspetiva muda radicalmente, pois já abarcamos a criação de bolhas financeiras no conceito de inflação, e naturalmente nos apercebemos dos riscos de tal expansão.

Até fins da década de 1980, quando a maioria dos bancos centrais dependiam diretamente dos governos, os bancos centrais imprimiam moeda para os governos o gastarem diretamente, e esse aumento de gastos gerava quase imediatamente inflação dos produtos e serviços de consumo. No entanto, desde 2008, para além dos bancos centrais serem completamente autónomos, os mecanismos de expansão da base monetária mudaram radicalmente. De lá para cá, os bancos centrais criam dinheiro para comprarem os ativos da banca ao mesmo tempo que creditam as contas das reservas bancárias. As alterações nos balanços dos bancos centrais correspondem então a um aumento do passivo em reservas da banca, e do ativo em hipotecas e dívida pública. Já nos balanços da banca, o que ocorre é apenas uma troca na composição dos ativos, em que as hipotecas e dívidas públicas são substituídas por reservas no banco central.

Sendo estes novos ativos da banca mais líquidos, esta pode então mais facilmente expandir o crédito concedido aos agentes consumidores e investidores da economia real, empresas não financeiras e particulares. Contudo, para esse dinheiro passar para a economia real e gerar inflação nos bens de consumo, seria necessário que a procura por créditos bancários por parte dos clientes aumentasse. Ora, resumidamente, o que tem acontecido então, é que os bancos centrais injetam liquidez na banca, mas não geram procura por créditos bancários, logo a liquidez é transferida para os mercados financeiros. Temos nesse caso uma espécie de inflação silenciosa, em que o Índice de Preços ao Consumidor segue uma evolução moderada, enquanto os mercados financeiros vão criando uma bolha. Vejamos o caso paradigmático dos EUA: a taxa de inflação do principal índice de ações, S&P 500, entre 1/jan/2009 e 31/dez/2019, foi de 270%, o que equivale a uma média anual de 13%, Enquanto isso, no mesmo período, as taxas de
inflação ao consumidor foram, nos EUA, de 20%, o que equivale a uma média anual menor que 2%. Ou seja, os consumidores praticamente não sentem na compra de bens de consumo a inflação gerada pela expansão da base monetária, que se refletiu sobretudo nos mercados financeiros.

Como os bancos centrais têm então criado as bolhas financeiras? De duas formas: 1) comprando diretamente títulos financeiros, e 2) incentivando a banca, através da injeção de liquidez cuja esmagadora maioria não será absorvida pela economia real, a financiarem mais investimentos financeiros de hedge funds, instituições financeiras e investidores em geral, bem como de empresas cujos modelos de negócio se baseiam em forte endividamento (veja-se por exemplo o caso da Netflix, que em caso de crise aguda sujeita-se a falir por ter o seu modelo de negócio baseado em forte endividamento, ao contrário das suas concorrentes WarnerMedia da AT&T, Disney+ e Apple TV que correspondem a serviços de empresas que nadam em dinheiro).

Resulta então que uma das mais preocupantes fragilidades do sistema financeiro mundial que resulta da política ultra expansionista dos bancos centrais é a tomada excessiva de riscos por quem contrai empréstimos a taxas de juro muito baixas. Essas fragilidades parecem invisíveis e vão-se acumulando até ao fim do ciclo, sendo que o ciclo colapsa muitas vezes de forma brusca, desencadeado por um gatilho repentino. A atual pandemia, ou qualquer outro próximo cisne negro, pode ser esse gatilho. O sobre endividamento de empresas, famílias e países pode ser a diferença entre as consequências dum cisne negro serem um problema grave ou um colapso sistémico.

Outra fragilidade é a do sistema bancário, que não consegue aguentar uma taxa de juro mais elevada porque isso significa baixar o valor dos seus ativos e diminuir a sua liquidez, o que leva a banca a vender os seus ativos para obter liquidez com realização de grandes perdas até ao ponto em que um primeiro grande banco fica sem liquidez e colapsa, seguindo-se o efeito dominó aos outros bancos que têm situações mais fragilizadas. Algumas lições que não foram aprendidas na crise financeira de 2009 foram então as seguintes:

1) o endividamento excessivo constitui um risco aumentado de falências, o que pode ser desencadeado por gatilhos imprevistos e repentinos, como quedas bruscas nas vendas por razões não antecipáveis; 2) estabilidade de preços ao consumidor não corresponde necessariamente a estabilidade financeira, o que disfarça aos olhos mais distraídos os riscos duma expansão monetária desligada do ritmos de expansão da produção de bens de consumo.

Alguns cenários possíveis que podem desencadear o colapso do sistema financeiro tal como o conhecemos hoje: 1) a República Popular da China, o Japão ou o Brasil, os maiores detentores mundiais, venderem massivamente os seus títulos de dívida soberana americana; 2) a transferência de dinheiro dos governos para as famílias e outros aumentos de gastos públicos resultarem em aumento significativo de inflação ao consumidor e isso forçar os bancos centrais
a subirem as taxas de juro o que por sua vez poderia desencadear o colapso do sistema bancário, de empresas e de famílias sobre endividadas; 3) falência de bancos numa dimensão que os governos não consigam resgatar; 4) generalização da insustentabilidade das dívidas soberanas a um nível que o FMI não consiga resgatar as economias sobre endividadas.

Pistas de reflexão sobre possíveis medidas preventivas do colapso desordenado do sistema financeiro mundial: 1) Adoção de criptomoedas ou similares como moedas de aceitação geral nas transações comerciais e em operações de crédito; 2) Consideração e estudo dum eventual regresso a um sistema do tipo padrão-ouro, em que haja algum fundamento que garanta um valor real associado ao valor da moeda; 3) Obrigar bancos demasiado grandes a se dividirem em vários bancos que concorram entre si, ao mesmo tempo que se anuncia o fim dos resgates bancários, em que gestores e sócios dos bancos comerciais e de investimento passam a ser responsáveis pelas consequências de políticas excessivamente arriscadas; 4) Reforma do sistema bancário que inclua a moderação da prática de transformação de maturidades (descasamento de prazos entre ativos e passivos bancários) e aumento das taxas de reserva legal.

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