O mundo traz-nos, todos os dias, sinais de mudança. Sinais fortes, frequentemente chocantes e, mais grave, preocupantes. Ou porque as clivagens e os ódios raciais ou religiosos se agudizam, ou porque a violência, individual, colectiva e de Estado se agrava, ou porque os mais elementares direitos dos cidadãos são postergados.

Dir-se-ia, até, que o longo e nunca terminado percurso que a humanidade vem fazendo, no sentido de uma maior dignidade do ser humano, se confronta com escolhos imprevistos e imprevisíveis.

Também por isto se percebe bem a afirmação de D. António Marto, em recente entrevista ao Público e citando o Papa Francisco, “…[vivemos] uma fase de mudança muito grande, é o que o Papa chama mudança de época, não é só época de mudança.” Nesta “mudança de época “surgem, também, sinais positivos que importa conhecer, divulgar e valorizar.

Sabemos que a Europa está confrontada, não com uma crise de migrantes, mas, antes, com as suas próprias incapacidades, que o afluxo de migrantes apenas veio colocar em evidência. E é a propósito desta realidade que importa olhar com atenção para uma recente decisão do Conselho Constitucional francês.

Sem entrar em tecnicismos jurídicos, dir-se-á que a decisão em causa vai no sentido de consagrar “que uma ajuda desinteressada, i.e., fundada em razões puramente humanitárias, à permanência, ainda que irregular, de estrangeiros, não deve ser passível de procedimento criminal”. Sendo esta decisão importante em si mesma, o que queremos enfatizar são os princípios aos quais apela e se fundamenta.

De facto, e pela primeira vez, o Conselho Constitucional francês consagrou e aplicou o valor constitucional do princípio da fraternidade, tirando-lhe consequências jurídicas, como, aliás, sempre fez com os princípios da liberdade e da igualdade – todos consagrados no Preâmbulo e no artigo 2º da Constituição da República Francesa.

Para além disso, contribuiu também para a sua caracterização. Integrou-o com uma dimensão humanitária, impôs a ausência de contrapartidas imanente à actuação desinteressada e desconsiderou juízos de legalidade estrita na valoração da actuação dos cidadãos quando em situações limite de preservação da dignidade humana.

Consagrou assim o princípio enunciado no artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

Por uma vez as palavras ganharam sentido, correspondem a conceitos a que a “mudança de época” e as questões limite que tal mudança suscita, e vêm dar uma nova vida e uma dimensão material até agora desconhecida.

Ouvi inúmeras vezes o saudoso Dr. Fernando Valle dizer que “o século XIX tinha sido o século da luta pela Liberdade, o século XX o da luta pela Igualdade e que o século XXI seria o século da Fraternidade.” Tinha razão. Neste caso, como em muitos outros, a sua lucidez foi, e é, um farol neste mar tormentoso dos nossos dias.

O Conselho Constitucional francês foi, também ele, com esta decisão, uma luz que se sobrepôs às trevas.

Nesta “mudança de época” que o século XXI parece trazer, a fraternidade ganha uma nova dimensão numa humanidade confrontada com os seus limites: a de todos ajudarmos todos, sem preconceitos, desinteressadamente e sem esperar contrapartidas. Assim sejamos capazes!

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.