Mas olhe que o Garrett não está no armazém”, responde o segurança da Marina da Nazaré. “Nós temos um encontro marcado. Esperamos um bocado. Onde fica o armazém?” “É virar já à direita”. Se seguíssemos as instruções teríamos acabado no fundo do mar. Fazemos a mesma pergunta a quem passa. “Mas ele não está lá”. As pessoas da Nazaré parecem saber onde anda o norte-americano que em 2011 colocou a vila piscatória no roteiro mundial do surf. O vento sopra com grande intensidade, naquele que era o dia do regresso de McNamara às ondas depois de uma lesão.
Garrett McNamara lançara o seu livro há duas semanas e, nessa altura, junto da sua comitiva, ficara marcado um “Sair Com” o surfista que detém o recorde de maior onda do mundo – 23,8 metros. Mal tínhamos falado com ele. O vento faz-nos aguardar no carro a chegada de umas quantas pessoas, imaginamos nós. Mas estamos na Nazaré – a sua segunda casa – e ali não precisa de companhia. Chega sozinho. A conduzir. “Não me deixaram conduzir durante os primeiros três anos”, confessa, enquanto nos leva de carro ao farol que ajudou a tornar no espaço que agora é.
“Eles conduziam-nos a todo o lado. Era bom porque tinha tempo para passar com a minha mulher, enquanto andávamos por aí”, começa por explicar, recordando os anos de 2011, ’12 e ’13. Garrett pensa um pouco – mais tarde viria a confessar que não tem lá grande memória – e reitera que “na verdade”, nunca deixaram a Nazaré durante essa altura. Repete três vez a palavra foco para sublinhar o que o fizera viajar desde o Havai até uma pequena e desconhecida vila piscatória – surfar a maior onda possível. Ou impossível. Isso não interessa muito.
McNamara aterrou em Lisboa em 2011, depois de um email ter estado cinco anos na sua caixa de entrada. Era de um tal de Dino Casimiro e tinha uma fotografia em anexo – de uma onda na Nazaré. “As pessoas não sabiam o que tinham aqui. Queriam a minha opinião sobre se a onda era boa e grande. É amazing”, conta, como quem seis anos depois ainda não acredita. “Quando cheguei o que mais me fascinou foi a onda – assim que a vi eu sabia…” Interrompe-se a si próprio para dar um olá português a alguém. Um conhecido? Talvez, de vista. Não. Afinal, é um familiar, pois as gentes da Nazaré são a sua “família afastada”.
Chegamos ao farol depois de uma viagem de cinco minutos feita de cor pelo norte-americano. “Sinto-me muito orgulhoso e muito agradecido que Portugal me tenha escolhido para vir cá” – conclui o raciocínio anterior.
Para uma segunda-feira de manhã de março, a afluência é maior do que se poderia esperar. “Antes não se via ninguém”, conta, enquanto aponta para a sua missão: “Tenho de partilhar isto com o mundo – a onda tem estado aqui sempre, a terra é espetacular, as pessoas são espetaculares [o amazing repete-se]… tanta história! É tão bom fazer parte disto”.
A pergunta seguinte desfaz-se na ventania do canhão da Nazaré. Garrett McNamara encontra-se a dois metros de distância mas não responde. Está a obcecado a ver o mar. “Olhem para isto… algumas ondas grandes hoje”. Atração total é o que confessa sentir por ondas cujo tamanho não se compara às que já surfou: “É curioso – as pessoas acham que as ondas têm de ser gigantes, porque estão habituadas a ver-me nas grandes; então acham que deste tamanho é pequeno, mas isto é grande e poderoso. Estas ondas são grandes o suficiente”, diz, enquanto encara com respeito o oceano.
Antes de entrarmos no farol, Garrett distribuiu mais um olá, agora ao condutor de uma carrinha com “kitesurf” escrito a azul. O interlocutor não domina o inglês, mas isso não demove McNamara de o cumprimentar. Uns gestos e faz-se a comunicação. Está muito vento na Nazaré e o senhor vai para Peniche. “Supertubos?”, pergunta Garrett. “Yes”. Depois de uma interjeição muito norte-americana de entusiasmo pelas vidas dos outros, entramos no farol-museu.
“Casámos mesmo ali”. Garrett aponta para o patamar mais ocidental da Nazaré, que acaba sempre molhado quando há ondas grandes. “As ondas estavam perfeitas e juro que não olhei para o mar!”, defende-se, como quem não estava a “trair” a mulher no dia do próprio casamento. Mas Garrett McNamara ama duas coisas ao mesmo tempo: Nicole e as ondas. Enquanto conversamos não desvia os olhos do mar. “Olha para aquilo… Incrível!”
Infância atribulada
A fixação faz lembrar a inocência de uma infância que não teve. Garrett viveu numa comunidade hippie durante grande parte da sua juventude, por intermédio do estilo de vida dos pais. “De locos”, é a primeira palavra que diz quando tocamos no seu passado enquanto criança. Fumou erva pela primeira vez aos quatro anos. Tal como explica no seu livro, e volta a frisar, a sua mãe “ia e vinha”; “quando estávamos com ela… era interessante”, diz, num eufemismo propositado. “Nunca tive a família perfeita.” Daí ter sempre querido encontrar “uma boa mulher” – “sólida [no sentido inglês do termo], consistente”.
O farol tem vários espaços e num deles decorre uma exposição de fotografia. O surfista norte-americano comtempla as imagens de outros colegas e sai outro amazing, como se de um miúdo que nunca tivesse visto tal coisa se tratasse; só que este “miúdo” de 48 anos tem logo ali ao lado uma placa onde se lê “World Record Garrett McNamara” no topo. Tiramos uma fotografia. Há turistas no espaço que não percebem bem quem é.
De novo cá fora, Garrett olha uma vez mais para o agitado mar, enquanto recorda como já antecipava algo que nunca tinha visto: “Estive focado nesta onda sem saber que vinha para aqui. O importante foi não ficar muito preso a uma região, como eu estava com Cortez Banks – achava que era ali que ia acontecer. O meu objetivo sempre foi encontrar a maior onda, e quando cheguei, no primeiro dia, percebi que era aqui”.
Quem tinha as chaves do armazém que abandonáramos minutos antes já chegou ao local. Durante o regresso, McNamara olha em redor e desabafa que, na altura em que chegou, “não conseguia acreditar no quão fácil era: as ondas aqui, o porto ali.” A facilidade de ter tudo tão perto contrastou com a palavra que ouviu muito, durante muito tempo – impossível.
“Quando cheguei aqui, acho que a expressão que ouvia mais era ‘não é possível’. Vamos abrir o farol, dizia eu. “Não, não é possível”. Mas é possível, vamos fazê-lo. É muito fácil criar a ideia de que não é possível apenas dizendo que não é possível”. Garrett tenta desarmar a mentalidade apontando para “tantos segredos escondidos” em território nacional. E é otimista: “Acho que Portugal está a começar a aperceber-se do que tem”.
Um mapa de papel
Ainda a conduzir, Garrett tira o telefone do bolso para nos mostrar um curto vídeo sobre surf que acaba por ser sobre a vida. “Vi isto no outro dia e gostei”: “Esquece os fracassos que tenhas tido, sejam pessoais, financeiros… Pensa: o que é que o herói do filme da tua vida faria? Faz essas coisas. Nós definimo-nos demasiadas vezes pelo nosso passado. Esse não é quem somos, nós somos agora. Escreve os teus objetivos, escreve as coisas que não gostas em ti próprio…” McNamara interrompe.
“Escrever as coisas é importante”, diz, enquanto o vídeo ainda toca. “Faz-te ter foco – acordas e vês o que tens de fazer. É como se tivéssemos um mapa; caso contrário, é igual a estar cego. Ires para onde o vento te levar também é legítimo, mas tem mais significado quando tens uma missão. É muito fácil ficar distraído quando não se tem um mapa”. As direções de que McNamara fala são-lhe especialmente importantes e foi ao escrevê-las que se conseguiu libertar de um estilo de vida do qual não se orgulha: “Aos 33 anos andava a mentir à minha mulher para ir a festas e beber”.
Essa é uma das passagens que refere na sua biografia: “Apenas escrevi a verdade, não tinha um objetivo posterior; mas espero que a mensagem se espalhe – inspirar as pessoas para seguir os sonhos, é esse o objetivo”. O surfista, natural do estado de Massachusetts, estabelece então uma comparação curiosa: “Acho que Portugal e eu somos muito parecidos, temos os nossos altos e baixos. Agora estamos a ir para cima”.
O armazém onde McNamara se prepara para entrar na água não demonstra muita atividade. As pranchas estão limpas e guardadas, os jet skis também. O norte-americano regressa a casa, no Havai, no dia seguinte e deixou tudo pronto para mais uma temporada fora de Portugal. Troca umas impressões com quem tinha as chaves do espaço. Percebe-se que se preocupa com os detalhes. Costuma envolver-se em tudo? “Tem de ser… se não estou por perto…”, explica, sem ser preciso terminar a frase. No final de contas, é a sua vida que arrisca cada vez que vai para debaixo das paredes de água que invariavelmente rebentam na areia.
Se há algo que todos os anos de experiência lhe ensinaram é o respeito que se deve ter. “Tenho de ser humilde. Se sou convencido, as ondas mandam-me abaixo, [a vida] dá-nos um abre-olhos. E já fui convencido, quando me lesionei nas costas. Achei que podia aguentar com todas as ondas. Assim que me apercebi disso, percebi também que tenho de respeitar tudo, não apenas a água – a família, nós próprios”. Um respeito que se alarga mesmo a quem não conhece.
Saímos do armazém e os vários pescadores que se encontram ali perto não param o que estão a fazer. Sente-se que Garrett McNamara é mais um. O surfista confessa “amar” os pescadores e evidencia as “mãos cheias de carácter”: “Eles são espetaculares, têm é uma vida difícil. Isto é muito especial para mim. É como se fossem família, a minha família afastada”.
Uma família com quem nunca se deu mal, mesmo quando dizem que é impossível fazer as coisas. “Eles estão a aprender que é possível fazerem-se coisas”. Mas Garrett recusa ser quem ensina. “Apenas partilho”, diz, enquanto lhe escapa um sorriso, não fosse “McNamara e Nazaré um casamento feito no céu.”
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