No Princípio era o Verbo, disse Deus. / E logo em seguida vieram os erros de concordância. / O mesmo Deus disse: Faça-se a Luz. / Mas disse para quem? / E porquê?
Nada nos prepara para uma conversa séria com Gregório Duvivier, o miúdo tímido que os pais inscreveram na escola de teatro Tablado, no Rio de Janeiro. Tinha nove anos de idade e, desde então, o seu desassombro tem sido imparável. De regresso a Lisboa, o Teatro Aberto será o palco do seu novo espetáculo a solo, “O Céu da Língua”, onde também cabe o inferno – palavra de ateu. “Tem isso tudo, porque o céu é o inferno, para mim, pelo menos, que sou ateu. O pesadelo é o céu cheio de cristãos fanáticos, cheio de pastores e padres… será? Ao mesmo tempo que eu estou falando isso eu amo a expressão céu da boca e céu da língua é uma brincadeira com isso – com esse lugar para onde as palavras vão depois de morrer. Para onde é que elas vão quando se deixa de usar uma palavra, não é? Elas vão para o céu da língua. E será que existem fora da gente, ou precisam de nós, seres humanos, para existirem?”.
Nesta comédia poética, Duvivier quer não só homenagear as palavras como os serviços que elas nos prestam. Até porque, e não é um pormenor de somenos importância, “as palavras nos salvam quotidianamente”. Em todos os sentidos. “A psicanálise é uma cura através das palavras, mas a política também é a disputa pelas palavras. O amor, ele é também uma palavra sem a qual, enfim, talvez a gente não conseguisse sentir o próprio amor”.
Spoiler alert: esta conversa é mesmo séria. E já foi tomada de assalto pela Palavra e pela sua cada vez menor importância. Exemplo. O valor subjacente à expressão ‘dar a palavra de honra’, cumprir, parece ter perdido a sua essência.
“A palavra já foi sinónimo de contrato. Minha avó ainda usava palavra como juramento: «palavra que você vem me visitar?», porque a palavra é o equivalente ao juramento. A palavra é o que você tem de mais precioso, e ela foi perdendo um pouco o valor. Talvez tenha a ver com fake news e com a gente poder dizer, “ah ele está falando mas ele não pensa”, e tal. E, volta e meia, acham que o humorista é uma pessoa que não fala sério”.
A conversa não é só como as cerejas. Por vezes, atropela-se de referências, outras vezes convoca dúvidas. E é aqui que entra em cena o preconceito linguístico. “No caso do Brasil, as pessoas acham que não sabem falar português. As pessoas acham que elas não dominam a própria língua. Tem um desautorizamento linguístico coletivo gigante no Brasil”.
“Uma pessoa que não conjuga verbo não é uma riqueza, é uma debilidade”
Duvivier dá um exemplo muito concreto desse preconceito. “O Lula durante muito tempo não se elegia, porque diziam que ele era uma pessoa que não sabia falar português, porque ele não fala os plurais exatamente, porque não conjuga os verbos à perfeição. Só que ele fala igual a 90% da população brasileira, logo, é uma maneira de excluir socialmente 90% das pessoas que têm direito ao discurso, que têm direito à fala, porque elas não falam o plural. No Brasil, 90% das pessoas vão falar ‘os carro’, ‘nós vai’. Então, o que é que acontece? Você não merece ter voz”.
Mas há mais, explica Duvivier. “Por exemplo, pobrema – é o maior marcador social que tem se você não fala problema mas fala pobrema. E quando a pessoa fala pobrema no português brasileiro, ela tá continuando um processo linguístico que é formador do português e que diferencia o português do espanhol! Mas isso no Brasil é tido apenas como um marcador social de que você não estudou. Então, a língua é um instrumento de silenciamento”.
O português é uma língua com ‘línguas dentro’. E furtando a imagem a Mia Couto, é de uma mestiçagem absoluta e de grande plasticidade, que absorve e se deixa absorver. Duvivier subscreve, mas realça que há outra coisa”, que é um colonialismo gigante em relação aos Estados Unidos, que faz com que as pessoas achem a nossa língua às vezes mais feia ou menos prática. E aí falam, “ah não porque o inglês é que é bom, não tem de conjugar verbo. O português é muito complicado”. Eu acho isso uma estupidez terrível!”, exclama, indignado. “Um inglês fala I love you – eu amar você. Ele não consegue conjugar o verbo amar, ele não consegue falar amo. Não sabe que love é igual ao verbo infinitivo ou no presente. They love ou I love ou I will love… Não tem amarei, não tem subjuntivo! Ele quer que eu ame é muito mais bonito, ou que amássemos. Uma pessoa que não conjuga verbo não é uma riqueza, é o contrário, é uma debilidade”.
O sorriso de Gregório faz-se largo, o rosto ilumina-se. “Eu amo que a gente flexiona os verbos. Amo também que a gente tem feminino e masculino… Tem um prédio no Rio de Janeiro, em Copacabana, que é conhecido como o prédio dos travestis e que eles chamam de «a prédia». Isso é maravilhoso! Um americano nunca vai saber o que significa isso [the building]. Não tem como se flexionar”.
Portugal, sustos e humor ‘puro sangue’
Desde que a improvisação e a “comédia em pé clássica”, vulgo stand-up comedy, entraram na vida de Gregório, até agora, passaram quase 30 anos. Seguramente haverá momentos mais marcantes, simbólicos, ou não fosse o ser humano cultor do simbolismo. O riso estalou. “Nossa, faz quase 30 anos que comecei…!”. E acrescenta que prefere falar exclusivamente sobre Portugal. Porquê? “Porque a gente fez o Porta dos Fundos como uma brincadeira… Claro que a gente levou a sério, mas então a gente estava na Globo, éramos todos contratados da Globo, mas não conseguíamos fazer nosso humor lá. Não deixavam a gente falar de política, de religião, de sexo, de marcas… Tudo o que nos interessa falar são os tabus, as proibições. Na Globo a gente não tinha espaço, por isso, a gente resolveu criar uma outra porta, uma Porta dos Fundos – um lugar que a gente pudesse entrar e sair e fazer o que quisesse”.
O Porta dos Fundos nasceu dessa vontade e, logo ao primeiro sketch sem filtros, “foi um sucesso gigante, porque o humor precisa dessa ausência de filtros e tal, mas a gente nunca imaginou que ele fosse chegar a esse tamanho”, confessa com genuíno encantamento. “E um susto que a gente tomou foi quando veio a Portugal e vimos que as pessoas assistiam aqui. Foi muito inesperado, porque a gente não fez pensando nesse público, a gente não tinha em mente esse público, porque não é tradição do humor brasileiro. O primeiro momento que eu vim foi muito emocionante”. O convite partiu de Hugo Nóbrega, diretor da produtora de espetáculos H2N Phenomena Makers. E, até hoje, os sustos sucedem-se, mas deliciam Gregório.
“Ainda hoje eu tomo um susto, porque o brasileiro não está acostumado a ser visto fora. Não é normal, sobretudo o humor. A música brasileira vem muito a Portugal, a literatura, a arte, mas o humor não. O humor, em geral, ele é restrito ao povo. E até hoje eu fico chocado, porque o humor é muito específico de uma cultura. Em geral, é difícil você entrar no humor de outra cultura, mas eu me sinto muito mais em casa em Lisboa do que em Buenos Aires, que é muito mais perto. Eu me sinto mais em casa em Lisboa do que em São Paulo”, sublinha, antes de dizer que é carioca e que “o Rio e Lisboa têm muito a ver”.
Não é segredo que o carinho do público português é enorme por Duvivier, que retribui dizendo que encontrou em Portugal “uma casa para um tipo de humor que eu amo, que é um humor mais atento à linguagem e à poesia. Acho que vocês gostam de um tipo de humor que é o meu preferido, que é esse humor mais poético”. Confessa-se um apaixonado pela “literatura engraçada de vocês. Falo de Miguel Esteves Cardoso, Ricardo Araújo Pereira, claro, mas não só. Mário Henrique Leiria, Mário de Carvalho também acho engraçado. E mesmo Eça tinha muito humor! Eu acho que vocês têm humor na sua melhor poesia, na sua melhor literatura, que é muito cômica e tem sutileza”. E explicita. “Eu sinto que tem um público aqui para esse tipo de linguagem que é o que mais me interessa, as esquinas do humor com outras linguagens. Porque eu amo o humor claro e ele é muito vasto, mas falo do humor puro e simples, do humor puro-sangue”.
São esses cruzamentos do humor com o lirismo ou com o didático, com o trágico ou o dramático, que mais lhe interessam. “Sinto que Portugal tem essa tradição, sabe? De gostar dessas encruzilhadas e dessas esquinas”.
O que podemos esperar de “O Céu da Língua”, esta nova aventura ‘gregoriana’? “Você tem um ator em cena pensando junto com o público e o levando para lugares não só cômicos, mas também emotivos através de um tema. Ou seja, é um ator explorando as possibilidades cênicas e cômicas de um tema, sem grandes subterfúgios. O que me interessa é um teatro que seja reflexivo, o lugar onde você vai e fala assim: “ué, eu nunca tinha pensado nisso, que interessante!”.
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