Uma das promessas centrais da campanha presidencial de Donald Trump foi a de inverter a tendência de globalização e romper com o statu quo do comércio internacional, atualmente centrado na Organização Mundial do Comércio (OMC), fundada em 1 de janeiro de 1995 com o objetivo de supervisionar e liberalizar o comércio internacional. Trump considera que este sistema multilateral é desfavorável aos Estados Unidos da América (EUA) e favorável à China e outros rivais comerciais.

Em particular, Trump vê o elevado défice externo americano como uma consequência de os EUA terem sido, nas suas palavras “enganados pelo resto do mundo durante anos”. De modo que, aconselhado por Peter Navarro, conselheiro para o comércio internacional, não tem hesitado em utilizar todos os mecanismos de à sua disposição para corrigir esta situação. Exemplos disso são as ameaças de imposição (e nalguns casos concretizadas) de tarifas aduaneiras ao México, India, China, Japão, União Europeia (UE), etc., bem como outras restrições impostas.

Apesar de muitos analistas terem vaticinado que Trump acabaria por não levar à prática o que prometeu durante a campanha, o que é certo é que a chamada Trumponomics é hoje uma realidade, e tem resultado em múltiplas guerras comerciais e renegociações de acordos bilaterais.

Até agora, o crescimento da economia mundial não tem sido particularmente prejudicado por estas guerras, mas é inevitável que a imposição de tarifas aduaneiras se traduza num aumento de preços de bens importados, e acabe por ter consequências económicas negativas. Por exemplo, e para mitigar as consequências negativas decorrentes das tarifas impostas pela China a produtos agrícolas americanos, o governo federal americano criou um plano de subsídios de mais de 12 mil milhões de dólares para agricultores americanos. Estes são um grupo de eleitores crucial para as aspirações de Trump em obter um segundo mandato, e daí a sua proteção especial.

Com 164 membros que representam 98% do comercial mundial, a OMC é um fórum multilateral por definição, pelo que aqui o poderio americano tem um impacto menor. Trump percebe isso e, consequentemente, prefere uma abordagem bilateral onde pode obter mais benefícios diretos. Os EUA (24% da economia global) são, provavelmente, o único país do mundo com o poderio económico suficiente para forçar outros a capitular em negociações comerciais.

Isto ficou bem patente na rápida renegociação do antigo NAFTA (North American Free Trade Agreement), que se transformou no USMCA (United States–Mexico–Canada Agreement), e cujos termos são na realidade muito semelhantes ao do anterior acordo, mas cuja renegociação permitiu a Trump clamar vitória.

Não é também por acaso que Trump fala constantemente num eventual acordo comercial entre os EUA e o Reino Unido num cenário pós-Brexit. Neste cenário, os EUA estariam numa posição mais favorável do que numa lógica de negociação comercial entre os EUA e a UE, cujas negociações estão congeladas.

Do ponto de vista dos EUA até se percebem as motivações americanas para este tipo de políticas comerciais restritivas. Afinal os EUA são já independentes em termos energéticos, e estão perto de se tornar independentes em termos de produção industrial e também em termos alimentares. É igualmente claro que o crescimento chinês assusta muita gente (inclusivamente na Europa) e leva à imposição de medidas protecionistas. Neste contexto, a resistência ao multilateralismo de alguns sectores da sociedade americana, e também europeia, é cada vez maior e, no curto prazo, dificilmente se vislumbram alterações a esta situação.

Importa ainda dizer que os EUA não são o único responsável por esta situação. Com efeito, a própria OMC reconhece que em 2018-2019 a imposição de medidas restritivas às importações aumentou para níveis históricos à escala global, e as tensões comerciais são cada vez mais visíveis e poderão ter consequências em termos económicos, nomeadamente diminuindo o investimento empresarial e o crescimento do comércio internacional.

Olhando para este panorama, Roberto Azevêdo, Diretor-Geral da OMC, apelou recentemente à liderança do G20 (um fórum internacional que junta os 19 países mais desenvolvidos do mundo e a UE) para respeitar os compromissos de cada país para com a OMC e regressar à multilateralidade que caracterizou a organização até aqui.

Para contornar o bloqueio ao nível da OMC, a UE tem também seguido uma abordagem bilateral ao celebrar múltiplos acordos comerciais bilaterais com países como o Canadá, Japão, Vietname, etc., mas também com organizações como o Mercosul, onde um acordo comercial foi finalmente concluído no passado dia 28 de junho após 20 anos de negociações. Outras negociações entre a UE e respetivos parceiros comerciais encontram-se ainda a decorrer, enquanto potenciais negociações comerciais EUA-UE estão de momento congeladas.

Perante isto importa perguntar: estará o multilateralismo do comércio internacional verdadeiramente morto e enterrado? Ou haverá tempo (e vontade) para reanimar a OMC e retomar uma dinâmica multilateral? Para já, e também devido à atual campanha de reeleição de Trump, é esperado que os EUA reforcem a sua tendência protecionista e anti multilateral pelo que, enquanto esta estratégia americana se mantiver, dificilmente a OMC funcionará (até porque os americanos estão atualmente a bloquear a nomeação de juízes e o financiamento da organização), mas a longo prazo creio ser possível reverter esta tendência.

Aliás, e não obstante os acordos bilaterais em curso, a UE ainda não desistiu de prosseguir uma lógica multilateral. Procurando desbloquear a organização, em 2018 a Comissão Europeia apresentou as suas propostas para reformar a OMC procurando flexibilizar negociações (permitindo que alguns países negoceiem em grupos mais pequenos) e modernizar a organização. Até a China declarou que a política impetuosa de Trump coloca a OMC num risco existencial, pelo que os chineses também publicaram recentemente um conjunto de propostas para reformar a OMC.

Veremos se estas propostas serão suficientes para levar as partes a negociar em boa fé e, porventura, levar a um ressurgir do multilateralismo comercial. Se assim for, talvez depois de Trump deixar a Casa Branca seja de novo possível retomar o multilateralismo das relações comerciais internacionais e reparar os danos causados pelas guerras comerciais.