Quando, há cerca de um ano, rebentou a “operação influencer”, Miguel Sousa Tavares acusou na TVI o Ministério Público de falta de cultura e contemporaneidade no que aos negócios diz respeito. Isto porque se tratava de um investimento avultadíssimo que implicava autorização e concertação por parte de uma diversidade de instituições públicas, sendo necessário, para tal, que houvesse alguém que puxasse a carroça. O tal “Influencer”. Um lobista, estatuto plenamente enquadrado no contexto europeu. Nessa altura o Ministério Público deu mostras de grande ignorância, ou interesse em influenciar politicamente.

O que se passa com o relatório de auditoria do IGF relativamente à venda da TAP em 2015 é em tudo semelhante. A empresa estava falida, sem tesouraria para pagar salários, combustível da GALP e outras obrigações base, e sem autorização da Comissão Europeia para que o Estado injetasse dinheiro, bem como sem qualquer interessado credível que não fossem David Neelman e Humberto Pedrosa.

Ora, quando o Estado está obrigado a vender um ativo deficitário, e também o estava por imposição do memorando da troika, naturalmente que o valor da transação será sempre baixo. Estamos a falar de empresas com uma avaliação de mercado negativas, ou seja, em que o mercado sugere que o proprietário/Estado teria de pagar a alguém para ficar com aquele Ónus. Evidentemente que os interessados sabem que politicamente isso é insustentável, porque os governos prestam contas aos eleitores e estes têm o atendimento que uma venda de uma empresa pública tem de dar muito dinheiro. Ou pelo menos que o Estado tem de receber algo em troca.

Assim os governos acabam para vender estas empresas falidas por um valor simbólico, colocando como exigência que o comprador faça um determinado investimento/capitalização na empresa para que esta se torne viável. Mas esta exigência é algo mais político do que propriamente empresarial, pois o investidor teria sempre de injetar dinheiro na empresa. É dos livros. Considerar que esta injeção, que é sempre um empréstimo, faz parte do valor de compra das ações é uma abordagem criativa que costuma ser utilizada por partidos políticos mais radicais, mas que o IGF caiu na tentação de reproduzir.

No relatório pode-se ler esta pérola:

“Esta operação complexa afigura-se suscetível de contornar a proibição imposta pelo n.º 1 do artigo 322.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), o qual impede que uma sociedade conceda empréstimos ou forneça fundos a um terceiro para que este adquira ações do seu próprio capital, cuja penalidade consiste na nulidade dos contratos ou atos unilaterais que lhe estão subjacentes”

Ou seja, o IGF considera que o fundo da AIRBUS emprestou dinheiro à Gateway de David Neelman e Humberto Pedrosa para que esta comprasse ações. Não foi isso que aconteceu. A injeção do dinheiro foi feita na TAP e nesta continua.

A Gateway comprou por 10 milhões uma participação maioritária ao Estado Português, comprometendo-se a emprestar 226 milhões à companhia de bandeira. A injeção de capital é sempre um empréstimo. Seja por suprimentos ou prestações suplementares. Ou seja, a TAP teria sempre a obrigação duma contrapartida. Com este entendimento da IGF, qualquer venda do Estado com obrigação de capitalização seria sempre um crime, pois o novo comprador iria injetar dinheiro que teria de ser devolvido.

A única diferença neste caso é que David Neelman foi apresentar o seu projeto de gestão ao fundo da Airbus, que nunca emprestaria o dinheiro se gestão fosse pública, em vez de utilizar capitais próprios ou recorrer à banca. E como contrapartida renegociou o contrato de renovação da frota da TAP que já existia desde 2005. Vejamos que Neelman não comprometeu a TAP na compra de pionaises, patinhos de plástico, ou outros bens que a TAP não necessita. Deu como garantia a aquisição das aeronaves que era algo que a companhia teria sempre de o fazer. Como a Airbus emprestou os 226 milhões Gateway e não diretamente à TAP, até seria o veículo económico de Neelman e Pedrosa a restituir os 226 milhões caso a TAP não tivesse capacidade de comprar os aviões, e não a companhia de bandeira.

De resto o princípio de um fornecedor adiantar dinheiro em troca de serviços a longo prazo é algo banalíssimo nos grandes negócios de Estado. Recorde-se que grande parte das PPP rodoviárias e a construção da ponte Vasco da Gama, bem como as vias rápidas da Madeira, tiveram exatamente esse princípio. As construtoras adiantaram o dinheiro para a construção das vias, em troca de contratos de longo prazo de gestão e manutenção. O IGF dessa altura era cego, era mais culto economicamente, ou não estava motivado politicamente!

A esse propósito recordo as constantes mudanças do IGF na operacionalização de pagamento do subsídio de mobilidade para as Regiões Autónomas sem informar/autorizar os CTT, entidade que procede ao pagamento, e deixando periodicamente milhares de beneficiários madeirense e açorianos sem conseguir levantar a verba que lhe garante circular pelo país em condições semelhantes aos dos restantes concidadãos, naquilo que aparenta constituir uma ação política encapotada, com evidente enfado face à existência de tal instrumento/garante da continuidade territorial.

Assim, o relatório de auditoria da IGF tem também o condão de influenciar o mercado. Este tipo de notícias serve, além da coincidência oportuna de macular os regressos à primeira linha política de Maria Luís Albuquerque e Miguel Pinto Luz, para desvalorizar a TAP que, após esta polémica, já não valerá os 200 milhões por 19% da empresa, que a Lufthansa recentemente ofereceu. Perceba -se que a companhia alemã não parece querer o controlo de gestão, bastando-lhe influência nesta, sinergias, e aproveitamento de slots, preferindo manter um parceiro público que, recentemente, empenhou, com satisfação, 3 mil e duzentos milhões de euros na companhia. Quem não gostaria de ter um sócio que paga o que for preciso?

Na verdade, o problema para muitos parece ser o facto da injeção de 226 milhões que deu um primeiro fôlego a uma companhia falida provir de terceiros e não de capitais próprios do investidor, mas não parece haver problema do Estado ter enterrado quase 4 mil milhões no total, por opção política do governo de António Costa ( aproveitando a autorização extraordinária da Comissão Europeia de injeção pública com o pretexto do COVID) , verba essa que faria certamente falta noutras áreas.

Percebo que o jargão ” comprou a TAP com o dinheiro da própria TAP” é quase imbatível, e há muito quem saiba que está operação é absolutamente corriqueira, mas complexa de explicar,  não a defendendo com medo de ser esmagado, mas a verdade tem mesmo de vir ao de cima.