[weglot_switcher]

Inteligência artificial na era da “mentira pura”. Os desafios da escola e do país

Antigo ministro da Educação Marçal Grilo considera a inteligência artificial (IA) um grande “desafio para o país”, sendo a “imprevisibilidade” o problema número um. “Vai haver muita gente desempregada e reconvertida” mas ninguém sabe o que estaremos a discutir daqui a dez anos. As escolas e as universidades terão um papel “fundamental”, não deixando cair valores que são a cola da nossa sociedade. Sobretudo numa era que não é de “pós verdade” mas sim de “mentira pura”.
17 Novembro 2025, 17h07

Eduardo Marçal Grilo assume olhar para o tema da inteligência artificial (IA) com “algum distanciamento”, mas, ao mesmo tempo, com “grande interesse”. O grande problema que o antigo ministro da Educação observa na transição “rapidíssima” a que estamos sujeitos é a “imprevisibilidade”.

“A IA e os algoritmos modificaram a nossa vida, mas não temos bem a ideia até que ponto isto vai alterar daqui para a frente. E isso implica que nós preparemos muito bem as pessoas”, disse o antigo governante na conferência “Zona de Impacto”, evento promovido pelo Jornal Económico (JE) e pelo Novobanco que se realizou na manhã desta segunda-feira na Escola 42, em Lisboa.

Numa conversa conduzida pelo diretor do JE, André Macedo, Marçal Grilo considerou a IA um “desafio enorme” para as escolas, mas não só, problematizando a questão em vários domínios. Embora haja “gurus” a escrever sobre o tema, na realidade “ninguém se arrisca a dizer” o que é que se estará a discutir daqui a dez anos, por exemplo, sobre que profissões vão desaparecer nos próximos anos.

O antigo ministro da Educação observa que as gerações mais novas tratam a tecnologia com “muita facilidade” e reconhece que as escolas “estão muito desatualizadas”. No futuro, prevê Marçal Grilo, “vai aprender-se das formas mais diversas, cada um vai aprender como quiser, é preciso é que queira”.

O responsável pela pasta da Educação entre 1995 e 1999 lembrou, a esse propósito, as conclusões de um estudo feito em Portugal há cerca de 30 anos sobre o que é que as pessoas queriam aprender mais. “50% dos inquiridos não queriam aprender mais nada”, recordou, defendendo que essa falta de interesse em saber e ir ao fundo das coisas será fatal nos dias de hoje.

Defensor de que “ainda se aprende muito nos livros”, Marçal Grilo assinalou que os momentos de transição são sempre “muito complicados” – e o mundo está a enfrentá-los “desde que o homo sapiens” anda por cá. O momento atual distingue-se de outros porque vivemos agora um “processo rapidíssimo”.

“Esta transformação a que estamos sujeitos tem uma rapidez tal que vai haver muita gente desempregada e muita gente vai ter que ser reconvertida”, apontou o antigo governante.

De facto, segundo o Fórum Económico Mundial, cerca de 59% dos trabalhadores a nível global vão precisar de se requalificar ou melhorar as suas competências até 2030 para se manterem relevantes no mercado de trabalho.

No que toca às empresas, Marçal Grilo assinalou que a esmagadora maioria em Portugal são microempresas com maiores dificuldades em acompanhar a evolução tecnológica. “O senhor Mário que nos fornece os legumes não vai certamente entrar na era digital. Essas são as profissões que sobrevivem. Sobretudo as que têm que ver com a alimentação. A IA não nos vai dar de comer”, brincou.

No entender do ex-ministro, o país como um todo tem um “grande desafio” nas mãos, sobretudo as “instituições de grande responsabilidade”.

Do lado do ensino, “as universidades vão ter que pensar muito bem”, porque o “país tem quem pense”, considerou, recorrendo aos números para o provar. “Em 1978, o país tinha 2.600 doutorados, o país hoje faz 3 mil doutorados por ano. Mesmo que 10% sejam de baixa qualidade, é um número muito alto relativamente àquilo que foi há 50 anos”.

Todavia, o “esforço” que envolve vai além do “meter os computadores a funcionar” – “o pilar dos conhecimentos científicos é fundamental”, defendeu Marçal Grilo nesta entrevista/reflexão. E acrescentou: “Ninguém consegue ter sentido crítico nem capacidade de resposta nem vontade de aprender se não tiver uma formação de base do ponto de vista científico. Saber onde está, de onde é que vem. Ter raciocínio lógico (…)”.

Outra das dimensões analisadas, que é “muito importante”, prende-se com as atitudes e comportamentos. “As boas empresas precisam de pessoas que sejam proativas, pessoas que venham e que acrescentem, e que não sejam passivas”, destacou.

A terceira dimensão é a que mais preocupa Marçal Grilo: a questão dos valores. “Vivemos no mundo da mentira. Antigamente falava-se do mundo do pós verdade. Não, não. É a mentira pura. Uma mentira é desmentida e continua a funcionar, que é uma coisa extraordinária. Ou o problema da solidariedade ou o sentido ético”, lamentou. “Tenho a certeza que no dia em que perdermos os valores, esta sociedade afunda-se. São os valores que tratam da ligação das pessoas”, acrescentou.

Nesse plano, as escolas e as universidades têm “um papel fundamental sobretudo pelo exemplo” porque a “ética é a prática da verdade, da solidariedade e sobretudo do respeito pelo outro”, enfatizou. “Na escola não se pode mentir. Na escola não se pode não ter solidariedade nem ter falta de sentido ético. Na escola não se pode desrespeitar os outros, achincalhar ninguém, praticar bullying”, reforçou ainda, considerando estas as “questões de fundo” da transição que vivemos.

Assinalando que em Portugal “não há um sentido institucional muito forte” porque não há no país grandes instituições (“há algumas”, disse), Marçal Grilo está, ainda assim, optimista. Acredita na geração abaixo dos 40/50 anos, onde há “gente muito boa”, assim como nas gerações mais novas. Estas últimas, em particular, têm uma vantagem – já não têm a cultura televisiva que existe no país, e que é uma coisa “horrível” porque “ninguém sabe verdadeiramente nada a fundo”.

RELACIONADO

RECOMENDADO

Reprogramar a economia com inovação, inclusão e impacto. Veja a “Zona de Impacto Global”

IA? “A sociedade portuguesa está a alienar-se por completo numa das discussões mais importantes para o futuro”, diz Adolfo Mesquita Nunes

Inteligência artificial na era da “mentira pura”. Os desafios da escola e do país

Pedro Santa Clara: “A IA vai ser uma grande alavanca [na produtividade], vai dar-nos superpoderes”

Zona de Impacto regressa para reprogramar a economia com inovação, inclusão e impacto

Zona de Impacto debate inovação e transição industrial. Veja aqui o evento do JE e novobanco

Inovação cada vez mais enraizada em Portugal mas falta de capital é problema

“Só financiamos projetos que sejam verdadeiramente sustentáveis”, realça Luís Ribeiro, administrador do novobanco

João Rodrigues Pena: “Deve haver incentivo fiscal à contratação de seniores”

Maria da Glória Ribeiro: “Legislação laboral deve adaptar-se a quem quer continuar a trabalhar”

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.