A sociedade portuguesa, como qualquer outra, terá os seus traços distintivos. Ainda que a efectiva caracterização de um povo seja uma matéria discutível, por depender de percepções subjectivas, é comum identificar nos portugueses uma inclinação para a inveja. Será esta uma generalização abusiva ou, de facto, os hábitos, as conversas e as preferências políticas dos portugueses indiciam uma infeliz hostilidade ao bem-estar alheio?

Pela sua persistência na existência humana, a inveja é reconhecida como nociva e tem sido combatida desde sempre. Aristóteles entendeu que a inveja se dirigiria a pessoas próximas, entre pares, não em relação a quem viveu em outros séculos, ou àqueles que estivessem num estatuto muito abaixo ou muito acima (Retórica, livro II, cap. 10). Retomando a tradição aristotélica, São Tomás de Aquino explicou que a inveja é uma tristeza pelos bens alheios inversa à caridade e à misericórdia (Suma Teológica II-II, q. 36, artº. 1.). Saltando para a actualidade, no memorável filme de David Fincher, “Seven” (Sete Pecados Mortais), a inveja culmina, de forma muito grotesca, na destruição dos bens invejados.

A haver algum fundamento na ideia de que a inveja sobressai no nosso país, importa reconhecê-la, pois ela é um mal que contamina indivíduos, relações sociais e económicas, e alastra ao terreno político.

Num primeiro olhar, podemos reflectir sobre as atitudes interpessoais a que assistimos. Qual é a reacção da maioria das pessoas quando alguém próximo: vê o seu esforço recompensado com um aumento salarial; tem um casamento estável; matricula os seus filhos num colégio privado; usufrui de um seguro de saúde; compra um carro novo; muda para uma casa melhor; investe, num curso superior muito dispendioso; ou recebe uma distinção pública por uma acção meritória?

Num segundo nível mais impessoal, como é que os portugueses reagem aos sinais de bem-estar e de sucesso de figuras públicas? As redes sociais, ao empolarem as piores tendências de cada um, podem ser uma boa plataforma de análise. Como é que os portugueses lidam com as diferenças de rendimento e, para além disso, com a existência de hierarquias, sejam elas económicas, académicas, políticas, religiosas ou sociais?

A passividade (ou contentamento) dos cidadãos perante a proposta de aumento do número de escalões do IRS é exemplo de como a aversão a quem tem mais – por pouco mais que seja – parece estar interiorizada na sociedade, tão habilmente instrumentalizada pelo poder político. E quantas vezes são levantadas dúvidas de licitude em relação à origem dos rendimentos de quem sustenta uma vida acima da média? Mesmo que os investimentos privados dessas pessoas constituam um sacrifício financeiro adicional àquele que já lhes foi cobrado fiscalmente, para financiar serviços ineficientes de que, muitas vezes, não usufruirão – como o ensino, em que o custo por aluno revela-se mais alto nas escolas públicas.

Na praça pública, parece que os escalões médios e superiores de IRS nunca têm direito à presunção de inocência face a tanto ressentimento – em defesa dos desconfiados ou invejosos, é verdade que é fácil associar o conforto a uma conduta desonesta, num país tão dominado por nepotismo, clientelismo e corrupção. Mas refiro-me aqui à vida das pessoas que, mesmo num contexto económico e institucional desfavorável, conquistam uma vida estável. Quando alguém lança infundadas suspeitas à proveniência do rendimento de outros, entram em acção a murmuração e a detração, referidas por São Tomás de Aquino. Isto porque a glória alheia entristece o invejoso e ele precisa de a desvalorizar ou descredibilizar.

Segundo a interpretação do conservador espanhol Gonzalo Fernandéz de la Mora, em “La Envidia Igualitaria” (1984) , a inveja tem vindo a ser politizada gradualmente, conseguindo dissimular-se como virtude social sob a terminologia de justiça distributiva. Na sua análise, as sociedades mais atingidas pela inveja igualitária seriam as mais atrasadas em termos de progresso, pois o progresso depende da existência de personalidades perspicazes e inventivas. Estará aqui parte da resposta do atraso económico nacional?

A inveja, por mais enraizada que possa estar, não tem de ser uma fatalidade. É possível fazer-lhe frente: primeiro, compreendendo que os êxitos alheios, por mais incríveis, instantâneos e garantidos que pareçam, dependem, em grande medida, de um árduo trabalho prévio e de longos períodos de incerteza; e, segundo, louvando as melhorias globais e o sucesso do próximo, em vez de enveredar por ressentimentos que redundam em miséria ou violência. Não esqueçamos, porém, que a ostentação de riqueza é a outra face da moeda e que deve igualmente ser evitada para não incitar à inveja.