A criação do estado de Israel foi excepcional. Não me importa discutir se concordo ou não com a sua criação. Não vivi nesse tempo e não sou historiador. É um facto irreversível. O que não é aceitável é a reiteração de uma condição de excepcionalidade. A condição de vítima histórica, por mais que se erijam memoriais justos, não legitima a excepção, não cauciona legitimidades desiguais de agressão e violência. A vitimização é uma agressão sob a capa da condição de vítima. A excepcionalidade é, aliás, uma violência sobre a própria história ao suspendê-la e ao deter a sua continuação.

Yitzhak Rabin não subscrevia esta excepcionalidade e foi assassinado por um fanático judeu, não menos fundamentalista do que os fundamentalistas islâmicos. Acredito que a maioria dos israelitas continua a não subscrever este ponto de vista. Acredito que muitas comunidades judaicas espalhadas pelo mundo também não. Mas, desde as últimas décadas, o poder político de Israel tem vivido do reforço desta excepcionalidade, sempre suportada no Ocidente por sectores poderosos na esfera económica, mas também intelectual, e também, à nossa escala, em Portugal.

Muitos de nós já se incompatibilizaram ou se viram incompatibilizados com amigos e colegas que não admitem que se diga simplesmente “há contexto”, ou que se diga, como disse António Guterres, que os “ataques do Hamas não aconteceram num vazio”. Deveria ter dito o quê? O contrário seria dizer que a Palestina é um vazio, é um nada. Por aí, apenas se semeia o ódio em que germina o Hamas, que semeia o ódio em que germina a desumanização da Palestina pela força de Israel, não importa por que ordem de eventos.

E António Guterres não disse nada sem antes ter dito isto: “Condenei inequivocamente os horríveis e sem precedentes actos de terror do Hamas, em Israel, no dia 7 de outubro. Nada pode justificar matar, ferir ou raptar civis deliberadamente – ou o lançamento de rockets contra alvos civis.” Não se esqueceu, não relativizou. Até foi sensível à ordem. Sem precedentes – “unprecedented”, disse.

O que sabemos é que estamos pior do que já estivemos. “A esperança de uma solução política para a situação tem vindo a desaparecer”, disse Guterres. Não é este facto verdadeiro, e dolorosamente actual?  Tão perdida vai a esperança de 1994, quando Yitzhak Rabin, Shimon Peres e Yasser Arafat recebiam o Prémio Nobel da Paz. Agora, só ouvimos, às escâncaras, promessas de anulação total do outro.

O estado de Israel é irreversível, mas a sua condição excepcional não é irrevogável. Revogá-la é uma condição para a possibilidade escassa de alguma esperança. É uma condição não do passado, mas do nosso tempo, por que somos responsáveis. É preciso substituir o círculo vicioso da identificação de culpados e de vítimas pela responsabilidade. E reconhecer tudo, em vez de anular.  Reconhecer tudo.

Espero que o discurso de António Guterres ajude a que se opere a esta mudança de perspectiva para nós contemporâneos. Sem ela, o futuro só prosseguirá a história de violência do passado. E nós não teremos significado nada para a resolução deste conflito hediondo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.