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Jaime Esteves: “Quadro de exagerada pressão fiscal não foi ainda revertido”

Fiscalista analisa medidas fiscais para este ano e alerta que, face à atual carga tributária, retira-se margem de manobra para usar o instrumento fiscal em caso de uma nova crise internacional.
23 Janeiro 2020, 20h17

Jaime Esteves defende que o Orçamento do Estado para 2020 é um orçamento de “maré alta” e que ainda não inverte o aumento da carga fiscal que, frisa, subiu “brutalmente” desde a intervenção da troika. O fiscalista analisa as medidas fiscais previstas para este ano, sinalizando agravamento da fatura fiscal para a classe média e perda de competitividade fiscal para as empresas. Além disso, alerta que quando for necessário usar o instrumento fiscal para acudir a uma nova crise internacional, a componente tributária “não poderá responder por continuar a ser usada na sua máxima extensão”.

Este é um OE que aumenta a carga fiscal?
Este é um orçamento de “maré alta”. Que quero dizer com isto? Que a carga fiscal subiu brutalmente desde os tempos dos PEC prévios à intervenção externa e, depois, com a intervenção da troika. Esse aumento decorreu do alargamento dos campos de incidência dos impostos, da criação de novas tributações, do aumento das taxas nominais e da redução da informalidade da economia graças aos novos mecanismos de controlo fiscal. Todo este quadro permitiu um “enorme aumento de impostos”. E esse quadro de exagerada pressão fiscal não foi ainda revertido. O que é preocupante, pois quando for necessário usar o instrumento fiscal para acudir a uma nova crise internacional com repercussões em Portugal, a componente tributária das políticas orçamental e económica não poderá responder por continuar a ser usada na sua máxima extensão.

 

Qual é o sinal que o OE dá às famílias ao adiar a revisão dos escalões?
Não sabemos em que sentido será feita essa alteração. Como se sabe, em Portugal, a progressividade é demasiado rápida, atingindo-se muito rapidamente as taxas marginais máximas. A revisão irá atenuar ou agravar este problema? Vai aumentar ou diminuir as taxas marginais máximas? Vai chamar mais ou menos famílias para o esforço fiscal? Não sabemos. Por isso não sei dizer se o adiamento é um sinal positivo ou negativo para as famílias, em especial para a classe média, que aguardava um sinal no sentido de que a política fiscal passasse a fomentar o funcionamento do elevador social e a poupança, o trabalho e o empreendedorismo.

 

Qual é o impacto na fatura fiscal das famílias se optar pela atualização de 0,3% e não à inflação do ano a que se reportam os rendimentos a reportar?
Está relacionado com a tal “maré alta” fiscal. O ano passado não houve atualização e este ano a atualização ocorre pela taxa de inflação do ano passado e não pela taxa de inflação prevista para este ano, como era usual até agora, e bem superior à taxa de inflação de 2019. Acresce que as deduções não são atualizadas, nem com a taxa de inflação de 2019, nem com a taxa prevista para 2020. A conclusão parece-me muito clara.

 

Haverá, pois, um aumento da fatura fiscal das famílias. Qual o tipo de agregado que poderá ser mais penalizado?
Pelo menos não há uma redução e não é fácil perceber quem ganha e quem perde. Parece-me evidente que, para quem tem rendimentos abaixo do nível mínimo de tributação, a questão não tem impacto na economia familiar e, para quem tem rendimentos mais altos, esta questão é marginal no valor da fatura fiscal. Por isso, a frio, diria que será a classe média.

 

Esta semana foram publicadas as novas tabelas de retenção que têm uma atualização de 0,3% e uma descida real da retenção mensal do imposto, justificando o objetivo de adaptar o imposto retido ao que deve ser efetivamente pago. Como comenta esta medida que o Governo diz que vai custar 100 milhões de euros?
Vem na linha do que falávamos e dá a noção da dificuldade de reduzir a fatura fiscal. A medida não é arrojada, para dizer o mínimo, tem as limitações que comentei e ainda assim implica uma perda significativa de receita, relevante para o equilíbrio das contas públicas. Parece-me que há a comentar que o orçamento não foi ainda aprovado.

Percebo o interesse de acomodar o mais rapidamente possível as tabelas ao que será a fiscalidade do ano, mas ainda assim há aqui alguma inversão da ordem normal das coisas. Primeiro, o Parlamento aprova (no caso, o Orçamento) e depois o Governo executa o que for aprovado (no caso, adapta as tabelas). Há muitos anos que as tabelas levam genericamente a uma tributação superior à devida. Por isso, até se pode dizer que o Governo tinha esta margam de atuação porque, no final das contas, mesmo que nada seja aprovado havia margem para reduzir as tabelas. Agora, se na especialidade, em tese, a atualização fosse de 1,2% o que se faria? Publicar-se-iam novas tabelas?

 

É um OE pouco arrojado na competitividade fiscal com a não redução do IRC e a manutenção de derramas?
É um orçamento interessante para as micro e pequenas empresas, pelo alargamento da Dedução por Lucros Retidos e Reinvestidos (DLRR), remuneração convencional do capital social, pelo favorecimento das concentrações de empresas, pelo alargamento do escalão das taxas de tributação reduzidas em IRC e pelo alargamento das deduções por encargos salariais no interior do país. E também para empresas de maior dimensão pelo alargamento de incentivos a softwares, renovação (com limitações) do SIFIDE [Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e ao Desenvolvimento Empresarial] e exclusão de selo nas operações de cash pooling de certos grupos. Tudo isto para facilitar o crescimento económico e a criação de emprego pelo aumento da dimensão das empresas, que lhes permita enfrentar a concorrência internacional de gigantes económicos.

 

E as empresas com mais lucros?
Depois há um paradoxo: as empresas que conseguem ter sucesso e, logo, lucros maiores são penalizadas com taxas agravadas de IRC, por via da derrama estadual. É isto que eu não entendo. Uma família pode ser mais ou menos rica, ter mais ou menos rendimentos um ano, e justificar por isso taxas de tributação progressivamente mais elevadas. O mesmo não sucede numa empresa. O valor dos lucros depende de vários fatores, como capital empregue, e não exterioriza uma capacidade para ser tributada proporcionalmente maior do que empresas que tenham um valor mais reduzido de lucros expressos em euros. O IRC não é por isso um imposto que viva bem com a progressividade. A derrama estadual é, pois, espúria à lógica de tributação das empresas e contrária à política económica prosseguida. É por isso que tenho dito que precisa de ser revogada tão rapidamente quanto possível.

 

A redução da taxa do IRC seria importante para as empresas?
No quadro da derrama estadual, é óbvio que muito longe vai o tempo do prometido IRC a 19%, quanto mais a 17%. A isto há que acrescentar todos os gastos que são necessários para a atividade das empresas, mas que, por uma razão ou por outra, não são dedutíveis e, logo, conduzem a um agravamento do imposto a pagar. Sem esquecer também as famigeradas tributações autónomas, igualmente espúrias à lógica da tributação do rendimento das empresas. Tudo a par do limitado prazo de reporte dos prejuízos fiscais. No resto da Europa, as taxas nominais descem. O que significa que, nesse aspeto, todos os anos perdemos competitividade fiscal. Por isso, atraímos menos IDE [investimento direto estrangeiro] e as nossas empresas têm menos capacidade de competir lá fora. Saímos todos a perder. No entanto, é justo reconhecer que as contas públicas só têm duas variáveis: receitas e despesas. Se a despesa não desce ou mantemos as receitas ou vamos obter mais endividamento. Só que mais endividamento significa que os nossos filhos vão pagar mais impostos. Diria que vão pagar amanhã os impostos que deveríamos ter pago hoje. Em conclusão: temos de reduzir as despesas, como todos sabemos há muitos anos.

 

Quais as medidas fiscais com maior impacto nas empresas?
Como referi, salientaria a renovação do SIFIDE, o DLRR, incluindo a facilitação da concentração de empresas, o software, a remuneração convencional do capital social, a exclusão de selo em certas operações de cash pooling, o alargamento das taxas reduzidas de IRC, a majoração das deduções por salários no interior do país. A simplificação na recuperação do IVA não cobrado a clientes parece-me igualmente muito importante.

 

A revisão da tributação autónoma para os carros com valor mais baixo é uma boa medida?
As tributações autónomas incidem sobre gastos, e o IRC sobre rendimentos, lucros. É claro que as tributações autónomas são totalmente espúrias à lógica da tributação do rendimento das empresas. Não deviam existir ou, pelo menos, não deste modo. Existem porque é preciso gerar receita fiscal para suportar as empresas e este é um modo de colocar as empresas a pagar impostos em situações em que há suspeitas objetivas de distribuição encapotada de resultados aos sócios, redução anormal de rentabilidade ou remunerações em espécie aos colaboradores. A revisão da tributação autónoma para os carros com valor mais baixo é uma boa medida, ainda que insuficiente. Faltam as demais.

 

E em relação às famílias, quais são as medidas que destaca?
Pela positiva salientaria a primeira previsão de excedente orçamental desde 1974. Porque dá esperança que a “maré alta” fiscal possa ser revertida. Depois, os incentivos, modestos, mas ainda assim estímulos, ao primeiro emprego em Portugal de jovens com curso de nível 4 e à natalidade para filhos até três anos. Mas o outro lado da balança parece prevalecer. Desde logo o tema da atualização dos escalões e deduções. Depois, o enorme aumento da tributação do imobiliário: alojamento local, IMI e IMT. Já as medidas do lado dos impostos indiretos parecem-me um pouco mais do mesmo: novos aumentos da tributação do crédito ao consumo e dos impostos especiais (os “dos pecados”) e ainda novas tributações a favor do ambiente, como a das embalagens. Tudo, claro, com impacto negativo na economia familiar.

 

E o aumento da dedução de IRS a partir do segundo filho até três anos que abrange um universo limitado de contribuintes?
É uma das medidas a destacar. Mas o impacto é pequeno. Gostaria que na especialidade pudesse ser alargado, mas estou consciente das restrições orçamentais que comentávamos. Logo, precisamos de descer a despesa pública para podermos ter este tipo de medidas com um impacto visível.

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