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João Câmara: “SIBS domina 95% do mercado de pagamentos. Isso limita a competição e a inovação”

Em entrevista ao JE, o presidente da ANIPE considera que este mercado enfrenta vários desafios em Portugal, sobretudo em três domínios: concorrencial, regulatório e ao nível da atratividade; as três valências estarão em debate esta quinta-feira. A associação considera que o sector deve encontrar o caminho para que país volte a ser referência europeia nos pagamentos.
10 Outubro 2024, 09h03

O Associação Nacional de Instituições de Pagamento e Moeda Eletrónica (ANIPE) reúne esta quinta-feira em Lisboa o sector de pagamentos na segunda conferência anual desta associação que representa as instituição de pagamentos e moeda eletrónica e também de ativos digitais.

Em entrevista ao Jornal Económico, João Câmara, presidente da ANIPE, considera que este mercado enfrenta vários desafios em Portugal, sobretudo em três domínios: concorrencial, regulatório e ao nível da atratividade. A associação considera que o sector deve encontrar o caminho para que Portugal volte a ser referência europeia nos pagamentos.

João Câmara considera que o domínio do Grupo SIBS de mais de 95% do mercado “limita a competição e a inovação” e que esse domínio faz com que novas fintechs e instituições de pagamento e moeda eletrónica tenham dificuldade em competir.

 

Como descreve o mercado de Pagamentos em Portugal ao nível de número de players, diversidade e inovação?

O mercado de pagamentos em Portugal tem evoluído nos últimos anos embora a um ritmo bastante mais lento que os demais estados-membros da UE. A globalização das finanças digitais e o aumento da adoção de novas tecnologias e inovações nos pagamentos tem feito muito timidamente o seu caminho no país.

Atualmente, o nosso mercado é caracterizado por uma estagnação no número de players e de investidores, por uma ténue inovação tecnológica e um cenário concorrencial que persiste afastar-se das melhores práticas internacionais.

A diversidade de players no mercado abrange desde instituições bancárias estabelecidas até empresas de tecnologia financeira (fintechs), startups focadas em pagamentos móveis, empresas de cartões de crédito e débito, e plataformas de e-commerce. Isso tem levado a uma oferta variada de serviços, desde carteiras digitais, pagamentos por aproximação (contactless), até soluções de pagamento peer-to-peer (P2P) com particular popularidade entre os consumidores.

A pouca inovação que se tem feito sentir no setor de pagamentos em Portugal, tem sido impulsionada pela digitalização acelerada e pelo foco na experiência do cliente em soluções vindas de fora. Como honrosa exceção temos os pagamentos contactless, que registaram um crescimento explosivo durante a pandemia de COVID-19.

Esperemos que a introdução esperada da PSD3 e do PSR ajudem a transformar o mercado, nomeadamente garantindo regras e condições de inovação e captação de investimento iguais para todos, reduzindo o poder discricional de cada Regulador local.

O mercado de pagamentos em Portugal está em transformação e a sua liberalização é inevitável, resta saber se conseguiremos enquanto país garantir que isto se proceda de forma ordenada e com benefícios óbvios para todos os intervenientes e a economia em geral, ou se por outro lado, iremos persistir na concentração de risco em cada vez menos atores, eventualmente pondo em causa a existência do Setor a médio prazo .

Quais os principais desafios para o sector de Pagamento e Moeda eletrónica em Portugal?

O setor de Pagamento e Moeda Eletrónica em Portugal enfrenta desafios significativos em três áreas principais: concentração de mercado, regulação e captação de talento e investimento.

Primeiro, o Grupo SIBS domina mais de 95% do mercado em segmentos-chave, o que limita a competição e a inovação. Esse domínio torna difícil para novas fintechs e Instituições de Pagamento e Moeda Eletrónica (IPMEs) competirem, afetando o desenvolvimento de um ecossistema mais diversificado.

Em segundo lugar, o ambiente regulatório é considerado complexo e conservador, com mais de 100 instrumentos legais que regem o setor, criando uma enorme incerteza jurídica. A regulação do Banco de Portugal fica muitas vezes aquém do esperado, especialmente para startups e pequenas IPMEs, dificultando a inovação e a entrada de novos players, enquanto afasta investidores. Embora a diretiva PSD2 tenha promovido o Open Banking, a sua implementação em Portugal continua residual e desafiante. Vejamos como é que a PSD3 e o PSR vão ser transpostos.

Por fim, a atração e retenção de talentos especializados é outro obstáculo. As principais capitais europeias, como Londres, Paris e Madrid, concentram os centros de inovação no setor financeiro, dificultando que Portugal se posicione como um polo de desenvolvimento tecnológico. A falta de mão de obra qualificada, aliada à carência de centros de inovação e programas formativos específicos, limita o crescimento do setor.

Além disso, a digitalização dos pagamentos e a adoção de novas tecnologias, como blockchain e criptomoedas, ainda estão atrás de outros países europeus, o que também afeta a competitividade do setor em Portugal.

Em resumo, a concentração de mercado, as barreiras regulatórias e a falta de talento e inovação são os principais desafios para o setor de pagamentos e moeda eletrónica em Portugal.

O sector dos Pagamentos e Moeda Eletrónica em Portugal surge no radar dos investidores nacionais e estrangeiros? Qual o verdadeiro potencial e que condições são necessárias reunir?

O setor de pagamentos em Portugal não atingiu até ao momento o seu potencial total, estando atrás de outros países europeus em termos de desenvolvimento, devido a um contexto concorrencial e regulatório menos aberto e mais desproporcional. Temos desde a nossa fundação em 2021 pugnado por promover a liberalização e competição, aumentar o número de empresas atuando no setor, incentivar a inovação para consumidores e comerciantes, promover a digitalização, atrair talento, garantir a aplicação razoável de regulamentos e gerar valor para a economia portuguesa. A ANIPE procura fazer com que o nosso país volte a ser um centro de inovação, crescimento e desenvolvimento de talento nos pagamentos, como era até o final dos anos 90, a nível europeu e mundial.

O mercado é controlado por alguns participantes, em particular o Grupo SIBS. A inovação é restrita, devido a um ecossistema pouco diversificado e pouco convidativo para novos agentes de mercado. Apesar de haver propostas promissoras, a rigidez regulatória impede o avanço da inovação.

O facto de termos 582 Instituições de Pagamento e Moeda Eletrónica registadas e a operar em livre prestação de serviços no país, com pouco ou nenhum valor acrescentado para a economia portuguesa, atesta de forma inequívoca o enorme potencial latente por explorar deste setor.

Em 12 meses não foi emitida nenhuma licença de Instituição de Pagamentos e Moeda Eletrónica (IPME) pelo Banco de Portugal, no entanto durante esse mesmo período surgiram 131 novas IPME vindas da UE a operar em Portugal em regime de livre prestação de serviços. Estes números fazem questionar se temos um problema de dimensão e apetência de mercado ou se existe uma manifesta incapacidade ou vontade em desenvolver o Setor. A nossa Associação considera que estas 131 empresas dão a resposta.

A ANIPE está plenamente convicta de que com políticas focadas e bem direcionadas, nomeadamente do ponto de vista legislativo e regulatório, será possível captar o investimento de pelo menos 10% desta Instituições, para que escolham Portugal como o local para licenciar e sedear as suas organizações, colocando no médio prazo o nosso mercado na dianteira da Europa passando a estar incluído no Top 5 da UE.

A 2ª Determinação do Banco de Portugal ao grupo SIBS irá estar já implementada no início de 2025? Será expectável um acesso transparente e não discriminatório ao scheme Multibanco por parte dos demais agentes de mercado?

O Banco de Portugal (BdP), responsável pela supervisão do setor financeiro em Portugal, adotou uma medida regulamentar conhecida como “Determinação Específica”, reconhecendo os atos ilícitos alegados e tentando mitigá-los. Essa ação reforçou a validade das decisões entretanto tomadas pela Autoridade da Concorrência. O BdP já impôs duas “Determinações Específicas” à SIBS SGPS SA (Grupo SIBS), com o objetivo de separar o sistema de pagamentos Multibanco da sua atividade de processamento e com isso aumentar a concorrência no setor de pagamentos.

A segunda determinação especificou dezembro de 2024 como o prazo final para a implementação destas mudanças, com a imposição de controlos trimestrais para acompanhar o progresso. Eventuais atrasos injustificados deveriam resultar em sanções. O objetivo da medida é garantir uma separação clara entre a gestão do sistema Multibanco e o seu processamento, algo exigido pelas normas europeias há quase uma década.

Alegadamente as justificações para o prazo de 24 meses de implementação baseiam-se, supostamente, no facto de as normas tecnológicas e de segurança da SIBS não estarem em conformidade com os padrões internacionais, o que a ser verdade deveria levantar algumas questões.

O acesso não discriminatório ao scheme Multibanco permanece uma questão por resolver, mas espera-se que até 2025 a implementação dessas medidas permita o acesso de outros agentes ao sistema, sem subterfúgios comerciais que sirvam de barreira, promovendo assim uma concorrência mais justa e equilibrada no setor de pagamentos em Portugal.

A Autoridade da Concorrência terá inevitavelmente de jogar um papel crucial na implementação de medidas corretivas que ajudem a cessar as práticas que recentemente condenou, isto apesar dos Agentes de Mercado poderem e deverem procurar medidas alternativas para promoverem a mudança necessária.

Temos empresas sedeadas noutros países da UE a vender serviços de pagamento online em Portugal, registando clientes com uma selfie e fotos do cartão de cidadão, conseguindo em minutos abrir conta e em dois dias entregar um cartão de débito por correio. É possível a uma empresa sedeada em Portugal fazer isso? Que impacto teria no setor e na economia em geral se o pudessem fazer em condições de igualdade?

O mercado de pagamentos em Portugal enfrenta problemas estruturais que impactam negativamente a concorrência, a inovação e a diversidade, limitando as escolhas de comerciantes, consumidores e turistas. Estas barreiras comprometem o desenvolvimento do setor, a sua contribuição para a economia nacional e a retenção de talento.

Entre os principais desafios está a falta de paridade regulatória com outros Estados-membros da União Europeia. O legislador e o regulador não promovem eficazmente a concorrência aberta e justa, deixando Portugal atrás em termos de regulamentação e tecnologia. Além disso, o mercado não oferece acesso igualitário a serviços de pagamento, carecendo de neutralidade concorrencial entre entidades públicas e privadas, o que torna urgente a implementação de sistemas que garantam a diversidade na reconciliação dos pagamentos ao Estado.

Tal como referi anteriormente, o enquadramento jurídico do mercado de pagamentos português é demasiado complexo, devido à profusão de instrumentos regulatórios que em muitos casos são subjetivos e promovem bastante insegurança jurídica, denotando uma enorme falta de conhecimento empírico de mercado na sua elaboração. De momento é extremamente improvável uma Instituição Financeira em Portugal ser sujeita a uma inspeção ou auditoria sem ser sancionada por algum tipo incumprimento, por mais insignificante que seja.

Empresas comunitárias que operam no nosso mercado com processos simplificados, como a abertura de contas por selfie, beneficiam de um favorecimento concorrencial, oferecendo serviços em Portugal em condições regulatórias mais favoráveis do que os próprios players nacionais, prejudicados pela regulação excessiva e a sua aplicação desproporcional.

Para corrigir estas distorções, é essencial que o legislador e o regulador intervenham de forma mais eficaz, promovendo um tratamento justo e não discriminatório entre os players. A neutralidade tecnológica e concorrencial deve ser garantida para promover um mercado mais competitivo e inovador, beneficiando a economia nacional.

O modelo espanhol com a SEPBLAC, o francês com ACPR, o Polaco com a KNL que separa a parte de Inspeção e Ação Sancionatória e Prudencial do organismo principal do Banco Central, facilita os processos de licenciamento e uma abordagem mais proporcional e construtiva ao mercado?

Olhando para o número de Instituições licenciadas que cada um desses países tem no seu registo, Espanha com 81, França com 104 e a Polónia com 284, eu à partida e mesmo sem conhecer em detalhe esse modelo orgânico de supervisão, diria que sim.

Ter dentro de uma mesma instituição reguladora, ou mesmo dentro de um único Departamento, funções legislativas através da publicação de Avisos, Instrutivos e Cartas Circulares, a função de fiscal através de Auditorias, a função judicial através de decisões sumaríssimas e a aplicação de sanções, fomenta um risco moral sério e não promove a mudança nem a aquisição de conhecimento empírico.

Nenhuma entidade que emita leis, as fiscalize, as julgue e por fim execute a sentença ou sanção, pode funcionar bem, essa é a minha convicção.

Neste nosso evento anual vamos discutir em detalhe com a ajuda de outras Associações Europeias de Pagamentos, da Irlanda, França, Bélgica e Polónia essa potencial solução. De uma coisa a ANIPE está certa, alguma mudança se terá de fazer nos processos de licenciamento, se não quisermos afastar o enorme potencial de investimento existente e quisemos garantir a continuidade do Setor.

Pode a Payment Services Directive 3 e a nova Payment Services Regulation (PSD3 e PSR) ser uma oportunidade para Portugal? Irá promover uma maior paridade na UE?

A nova Payment Services Directive 3 (PSD3) e o Payment Services Regulation (PSR) apresentam uma oportunidade para modernizar o setor de pagamentos em Portugal e alinhar-se com as melhores práticas europeias. Essas diretivas visam reduzir barreiras regulatórias, aumentar a competitividade e uniformizar as regras em toda a União Europeia. A PSD2 já trouxe grandes mudanças ao setor, e a revisão atual da Comissão Europeia visa fortalecer ainda mais a proteção ao consumidor e criar condições equitativas para o setor de pagamentos.

A entrada em vigor das novas regras está prevista para 2026, e é crucial que o setor de pagamentos se prepare. A seu tempo as autoridades europeias irão emitir normas técnicas complementares, como as relacionadas com autenticação forte de cliente, para ajudar as empresas a implementar as mudanças. Todos os players do ecossistema de pagamentos, incluindo o Legislador, o Regulador e os Agentes de mercado, devem assumir as suas responsabilidades e contribuir para a implementação eficaz da nova regulamentação.

No entanto, as IPMEs portuguesas, sendo em grande parte pequenas e médias empresas, irão enfrentar desafios significativos no processo de recertificação de licenças previsto na PSD3, caso se mantenha a abordagem ortodoxa que pautou a última recertificação.

Se a regulação for desproporcional, pode sufocar a inovação, e embora a regulação europeia ofereça alguma proteção e estabilidade, o excesso e inadequação de legislação local pode dificultar a adaptação às novas tecnologias. Um equilíbrio adequado pode, no entanto, fomentar tanto a proteção ao consumidor quanto a inovação, garantindo que o setor português de pagamentos se torne competitivo globalmente.

Qual a perceção do mercado acerca da perda de competitividade dos pagamentos na UE quando comparado com outras regiões? Estará a UE mais focada em regular do que inovar?

A perceção do mercado em relação à competitividade dos pagamentos na União Europeia (UE) tem sido de preocupação crescente, especialmente quando comparada com os Estados Unidos, China e Brasil. Muitos players da indústria acreditam que a UE está a perder terreno devido ao foco excessivo na regulação, o que pode estar a dificultar a capacidade de inovar de forma ágil e eficaz.

Na UE, o ambiente regulatório é robusto, com diretivas como a PSD2 e, em breve, a PSD3, focando-se principalmente na proteção ao consumidor, na segurança dos sistemas e na harmonização das normas entre os Estados-membros. Estas regulamentações têm, sem dúvida, gerado avanços importantes, como a promoção do Open Banking, que apesar disso teima não chegar a Portugal. No entanto, a complexidade regulatória também é vista como uma barreira significativa à inovação. Empresas fintech e startups enfrentam longos processos de conformidade e licenciamento, o que as impede de se adaptar rapidamente às novas tendências tecnológicas.

Em contrapartida, países como os Estados Unidos, a China e o Brasil, tendem a ter ambientes mais flexíveis, permitindo um ritmo de inovação mais acelerado, especialmente em áreas como blockchain, criptomoedas e pagamentos instantâneos. A perceção é que a UE, embora ofereça um quadro regulatório estável, pode estar a focar-se demasiadamente em regular, sacrificando a agilidade necessária para acompanhar a inovação tecnológica e desenvolvimento de mercado.

Na UE os estados-membros de momento estão sujeitos a legislação proveniente da Comissão Europeia, da EBA, do Legislador Local e do seu Banco Central, empurrando a região para um cenário de hiper-regulação sem benefício aparentes e que empurra a região para um cenário de perda de competitividade e inovação na arena global.

 

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