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Joe Berardo: A ascensão e queda do comendador que ‘comprou’ a Mona Lisa

Aquele que já foi um dos homens mais ricos e poderosos de Portugal está a braços com uma ação executiva por parte da CGD, BCP e Novo Bancopara cobrar dívidas de quase mil milhões de euros. O empresário madeirense, que fez fortuna na África do Sul, vai ser ouvido na próxima terça-feira no âmbito da comissão parlamentar de inquérito à gestão da Caixa Geral de Depósitos.
18 Maio 2019, 12h00

No dia em que entrou numa loja para comprar as mobílias para mudar de casa, logo após o casamento, Joe Berardo reparou numa parede cheia de quadros. Pediu à mulher para perguntar ao funcionário da loja quanto é que custava um deles. Acordou o preço, recebeu a encomenda em casa, mas quando passou a mão pela tela viu que não era verdadeira. A mulher respondeu-lhe: “Se quisesses comprar o original, tinhas que ir ao Louvre. Isso é a Mona Lisa.”

Aquele que foi um investidor de relevo na bolsa portuguesa, em 2007, e que chegou a ser o quinto homem mais rico do país, com uma fortuna avaliada em 890 milhões de euros, (segundo a revista ‘Exame’)  está em trajetória descendente. Mesmo sem a Mona Lisa no portefólio, o empresário madeirense pediu que 16 obras, que compõem a Coleção Berardo exposta no Centro Cultural de Belém, fossem expedidas para o Reino Unido. O pedido remonta ao ano passado e embora a saída dos quadros fosse declarada como temporária, não excluía uma “eventual venda”. O jornal ‘Expresso’ avançou que a estratégia foi travada pelo Governo.

Os bens em causa fazem parte de um negócio em que os bancos acreditam que podem recuperar uma dívida no valor de 962 milhões de euros, contraída em empréstimos ao comendador. O acordo que englobava as obras impedia a saída das mesmas do território nacional até 2022.

O pedido para a expedição das 16 obras terá sido efetuado pela Associação Coleção Berardo, da qual Joe Berardo é o responsável máximo. No entanto, a resposta teve um parecer negativo, pelo que os quadros não poderiam sair do país. A associação presidida por Berardo terá contestado, reclamando que esse despacho era uma “ilegalidade” e um “desvio de poder”.

“Enquanto vigorar o contrato de comodato, a Associação Coleção Berardo não pode dispor dos bens culturais”, referiu o Ministério da Cultura em resposta, num documento citado pelo semanário ‘Expresso’.

O contrato prevê ainda que é obrigatório haver um “voto favorável de quatro dos membros do conselho com direito a voto” para a “transferência de qualquer quadro da Coleção Berardo do Museu para qualquer outro local, exceto por razões de conservação, ou em conformidade com a política de empréstimos para exposições temporárias em museus e nos termos e condições em vigor em cada momento na Fundação para esse fim”.

Além do Museu de Arte Moderna por si inaugurado em 1997, tendo posteriormente conseguido chegar a acordo com o Governo para a instalação da coleção no Centro Cultural de Belém – o Museu Berardo de Arte Moderna e Contemporânea, inaugurado em 2007 -, o acervo do comendador reúne obras bastante valiosas que já foram integradas em exposições dos mais importantes museus do mundo, incluindo o Centro Georges Pompidou, em Paris, a Tate Gallery, em Londres, o MoMA e o Guggenheim Museum, em Nova Iorque, e o Museu Rainha Sofia, em Madrid.

Comissão de inquérito

O empresário tem sido dos clientes bancários mais referidos na segunda comissão de inquérito parlamentar à gestão da Caixa Geral de Depósitos (CGD). Recorde-se que no dia 20 de abril, CGD, BCP e Novo Banco entregaram no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa uma ação executiva para cobrar dívidas de Joe Berardo no valor de quase mil milhões de euros.

A ação para cobrança da dívida tem como executados o empresário madeirense, a Fundação José Berardo – Instituição Particular de Solidariedade Social, a empresa Metalgest – Sociedade de Gestão e a empresa Moagens Associadas. Na próxima terça-feira, 7 de maio, será ouvido juntamente com Manuel Fino na segunda comissão de inquérito à recapitalização e gestão da CGD.

No entanto, o ex-presidente da CGD, Carlos Santos Ferreira, disse no Parlamento que não houve créditos de favor no banco público e nunca viu nada que permitisse concluir que o cliente Joe Berardo foi tratado de forma especial. “Nunca vi nada que permitisse concluir que essa pessoa que citou tivesse tido tratamento fora das regras”, afirmou, em resposta ao deputado do PCP Paulo Sá, na comissão parlamentar de inquérito à CGD.

O presidente do banco público entre 2005 e 2008 repetiria depois a mesma ideia ao deputado do PSD Duarte Pacheco: “Nunca vi esse cliente em questão com tratamento fora do comum”. Santos Ferreira vincou que “não há créditos por favor” na CGD, considerando mesmo que isso seria uma “ilegalidade”.

Com “V” de vitória

Longe vão os tempos de ouro. Só no BCP, chegou a ser dono de uma posição de 7% do banco, tentou comprar a SAD do Benfica e o seu papel foi importante para o desfecho de diversas operações, nomeadamente as relativas ao controlo da Portugal Telecom e do BCP. Aliás, a partir da assembleia geral de maio no Porto, em 2007, na qual saiu de braços no ar e dedos em “V” de vitória, Berardo tornou-se o mais feroz opositor a Jardim Gonçalves, pondo em causa remunerações e regalias dos administradores do banco.

Nascido em julho de 1944, emigrou para a África do Sul onde casou com Carolina Conceição, com quem tem dois filhos, Renato e Cláudia. Neste país vendeu equipamentos eléctricos para um patrão italiano, foi porteiro de discoteca e chegou a ser o maior comprador de verduras do mercado, vendendo-as aos trabalhadores das minas.

O gosto pelos negócios nasceu em solo africano. Em 1968 ajudou a criar o grupo Egoli Consolidated Mines Limited . O grupo – que congregava diversas explorações mineiras de ouro e de extração a partir de recuperação em areias auríferas – transformou-se numa das 100 maiores empresas da África do Sul. Com maior poder financeiro, decide iniciar a sua primeira coleção de arte. Aliás, desde menino que juntava selos, caixas de fósforos ou postais de navios que atracavam na sua ilha.

Na década de 1980 é nomeado presidente do Bank of Lisbon e pouco tempo depois integra o Conselho Consultivo do Presidente da República da África do Sul. Assumindo-se contra o Apartheid, toma um papel ativo no país e atua desde dentro do Partido Nacional para acabar com o sistema de segregação racial. Nos anos seguintes diversifica a localização dos seus negócios, expandindo para o Canadá, Portugal e a Austrália. As viagens constantes e o aumento da violência na África do Sul e o apelo da sua terra natal ditaram o regresso à pátria. Em 1985 foi-lhe atribuído o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique, pelo então Presidente Ramalho Eanes. Em 2004 foi distinguido com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Em 2005 foi agraciado com a Legião de Honra, a mais alta condecoração francesa.

Desaparecido dos holofotes mediáticos, o empresário que será ouvido na terça-feira no âmbito da comissão de inquérito da CGD, costuma fazer no mês de setembro, na Quinta da Bacalhôa, a “Festa das Vindimas”, em Vila Fresca de Azeitão, no concelho de Azeitão. Aqui, junta clientes nacionais e internacionais, amigos e família. O empresário costuma dizer que é “um dos dias mais felizes do ano”.

Artigo publicado na edição nº 1987 de 3 de maio, do Jornal Económico

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