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Júlio Isidro: A casa destroçada do “tipo porreiro”

Ao convite do Jornal Económico para uma saída mais informal, Júlio escolheu duas opções. Ambas relacionadas com a RTP. “Das duas, uma: ou vamos à Gulbenkian, terrenos nos quais começaram as emissões experimentais da televisão, ou vamos aos antigos estúdios do Lumiar. Sabe? Eu fui o homem que fechou a porta do Lumiar”. Optámos pela segunda.
29 Janeiro 2017, 09h00

E levámos Júlio Isidro, de novo, a subir a ladeira dos sonhos, onde tudo foi possível durante 50 anos. E onde havia glamour e fantasia resta hoje abandono, destruição e sem-abrigo.

Júlio Isidro surpreendeu ao aparecer acompanhado pela mulher, Sandra, porque tem um “amor sem fim, mesmo depois do seu fim”, como explica na autobiografia que lançou em outubro último. Se o facto de vir acompanhado causou estranheza à primeira vista, rapidamente se tornou natural, sendo que a visita guiada aos antigos estúdios da RTP, na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa, foi feita com Júlio e convidados. Parece sina do apresentador, que se foi cruzando com tanto talento e que raramente esteve sozinho no pequeno ecrã.

Para este regresso ao passado, Júlio Isidro trouxe consigo na memória Artur Agostinho, Joaquim Letria, João Soares Louro, Fernando Pessa, Henrique Mendes, António Variações, Carlos Paião, entre outros nomes, muitos deles já desaparecidos, que evocou durante o reencontro com a própria história.

Antes da enorme ladeira, o portão gradeado, cá em baixo, exibe o imperativo “Não estacionar”. Lido em voz alta por Júlio tem um carácter ainda mais definitivo. “Está escrito não estacionar, mas e a porta, será de passar?”. A pergunta é meramente retórica. A resposta é automática: “Isto é um bocado clandestino, mas estão aqui tantos carros estacionados…”, comenta Júlio, com a curiosidade de quem volta à casa de uma vida.

Antes de se mudar para a Marechal Gomes da Costa, em Cabo Ruivo, a RTP estivera numas instalações que “alugou temporariamente por 50 anos”, e que acumulava com a histórica sede da 5 de Outubro, explica o apresentador do programa “Inesquecível”, na RTP Memória, tentando contextualizar a emoção que começa a sentir ao subir agora uma rampa já tomada pela natureza selvagem.

“Foi por aqui que subi há 57 anos… Foi a pé. Era pedra, basalto”. A mulher de Júlio ajuda também a desconstruir as memórias da televisão, enquanto sobem o piso alcatroado preenchido por vegetação e ramificações. “Parece um território de guerra, é terrível olhar para isto”. Isto é o que resta dos primeiros estúdios da RTP, passado uma década da sua desativação.

O frio que se faz sentir limitaria os movimentos de qualquer um. Não os de Júlio, que, de quando em vez, abre os braços, quiçá tentando abraçar ou ser abraçado por algo que outrora foi também seu.

Júlio Isidro explica o passado de cada edifício, agora em ruínas, com paredes que já não se lembram que fizeram parte da História da televisão portuguesa. Entre janelas sem vidro e vãos sem porta, o comunicador pede à mulher, sempre tratada por “amor”, que vá tirando fotografias, pois desde o fecho da emissão, naquelas instituições, há uma década, que nunca mais voltara.

O que resta do que fora um grande edifício, num dos cantos do terreno, é a ruína que mais atenção merece do apresentador de 72 anos. “Fiz um programa chamado estúdio 5, que era aqui, onde inicialmente era o armazém de cenários e a carpintaria. O programa não está uma ruína, mas o sítio onde eu o fiz é. É também uma ruína para a palavra saudade; é ruinoso porque temos a ideia de que as coisas não se degradam, de que a morte não degrada, mas degrada. A não ser que isto estivesse em cinzas, mas não está em cinzas, está aos bocados. Desfaz-se sozinho com o tempo… é…” – Júlio Isidro não termina a frase. Olha de forma contemplativa. Percebe-se a emoção no seu silêncio.

O som da conversa acrescenta mais um convidado. O mais inesperado de todos. Aquela que tinha sido a casa da televisão é agora abrigo de quem não o tem. “Boa tarde, está tudo bem?”, pergunta um homem de origem africana, reparando apenas que tinha visitas. “Entrem, venham cá”. O convite é substituído pela questão sobre se conhece a história daquele local, ao que o sem-abrigo responde afirmativamente.

“Era a RTP, não era? Pelo menos foi o que me disseram”. A história tinha-lhe sido transmitida. Contudo, os olhos daquela pessoa ganham vida assim que reconhece o rosto que não passa despercebido a ninguém: “Júlio Isidro!”, exclama prontamente. “Você já trabalhou aqui!”. O tratamento ganha formalismo depois da resposta assertiva do apresentador. “Sr. Júlio Isidro, quero dar-lhe uma palavra de reconhecimento.” O homem desalojado confessa ter feito daquele recanto o seu lar. Olha para Júlio e lança-lhe o convite para que entre naquela que outrora fora a sua casa.

O convite é cordialmente rejeitado. A visita guiada não pára. Aqui isto, aqui aquilo. A memória do comunicador não falha. “Aqui era a montagem de filmes, aqui era o acesso das notícias, os departamentos de informação. Ali era um estúdio, mas eu não me meto lá dentro”. “Não sabemos o que nos espera”, completa Sandra.

Júlio Isidro recorre à palavra “saudade”, mas rapidamente prefere “boas memórias” para descrever o sentimento que tem pelos profissionais que preencheram aquele lugar. “Na minha área recordo o Artur Agostinho, que quando morreu foi a mesma dor de quando morreu o meu pai, o Fernando Pessa, o João Soares Louro…”, recorda.

“Lembro-me do formalismo que isto tinha”, desabafa, quase parecendo obrigado a libertar aquele comentário. “Tinha contínuos fardados, com identificação de número de funcionário”, justifica.

Naquelas instalações, Júlio Isidro apresentara um programa de aeromodelismo, onde conciliaria duas paixões, que ainda hoje preserva. A elas soma-se a rádio e a confissão do desejo de regressar: “Gostaria de que a fase final da minha carreia fosse feita na rádio; [gostaria] de deixar de pintar a cara, de me por bonito com fatinhos e fazer apenas rádio”. O objetivo é fazer como Bryan Matthew, que na Radio 2, da BBC, “todos os sábados emite um programa com música do seu tempo”. “Eu faria com facilidade um programa da música dos anos 70 e 80. Para passar à prática falta apresentar o projeto a uma rádio, talvez este ano de 2017”, calcula o antigo locutor do Rádio Clube Português.

No seu programa certamente tocaria Variações e Paião, talentos que descobriu sozinho. Sobre as diferenças entre aquela altura e agora, a palavra de ordem é arriscar: “É preciso que as pessoas de hoje em dia não se remetam tanto aos estudos de mercado, às potencialidades de A ou de B. Ao ‘será que isto vai valer a pena?’ e ao ‘será que não vamos perder audiência?’ Há que arriscar – eu arrisquei toda a vida, se calhar com alguma inconsciência, mas ainda bem, arrisquei fazer coisas diferentes. Umas resultaram muito bem, outras não tão bem. Não acho que tenha feito coisas miseráveis”, reitera Júlio com assertividade.

Tanto tempo na antena, 57 anos de carreira cumpridos no dia 16 de janeiro, provam mais do que resiliência e perseverança – evidenciam resistência à fama. A estratégia para o conseguir “é não lhe dar importância”, algo que só “é possível tendo a cabeça suficientemente distante dessas coisas”. O que hoje se verifica, segundo Júlio, é “a ideia de que ser famoso é ser badalado, é ser muito fotografado, é ser capaz de exigir tudo no camarim. Eu penso exatamente o contrário. Nunca disse aos outros: ‘quem é que vocês pensam que são? Digo ‘quem é que eu penso que sou’”, assegura Júlio Isidro, que não se importa de que a única impressão com que os seus interlocutores fiquem do apresentador mais experiente da televisão portuguesa seja a de que, “afinal, o Júlio é um tipo porreiro.

[Notícia publicada na edição impressa de 20 de janeiro]

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