Há uma dezena de anos jornalistas meus conhecidos ligavam-me para saber se eu lhes podia dar informações sobre processos que acompanhava como Advogado. Volvidos dez anos, relativamente a certos processos em fase de investigação, há jornalistas com um acesso de tal forma privilegiado aos autos que sou eu quem se vê na contingência de procurar nos textos que dão ao prelo, as referências às decisões e aos despachos prolatados em processos onde jaz, moribunda, a minha procuração forense.
Do que aqui se trata não é da questão da violação do segredo de justiça: essa existe, todos sabemos, mas não é do que agora me ocupo. Aquilo a que me refiro é a processos que fruto da inércia investigatória das autoridades – acidental ou propositada – podem ser licitamente acedidos e divulgados. Mas que, numa lógica de quase compensação do desprezo a que durante anos foram votados, a partir de determinado momento, a sua investigação se processa em tempo real para o público.
Um Big Brother da tramitação processual, em que certos jornalistas são convidados à consulta processual, vivendo numa profícua relação simbiótica com os responsáveis da investigação: uns obtêm notícias frescas com contornos mediáticos, os outros o alarme social que lhes permite justificar a perpetuação da investigação, colocando-se a salvo de qualquer aceleração processual e a coberto da possibilidade da fixação de qualquer prazo de inquérito.
O processo penal aparta-se da sua matriz de garantia de direitos fundamentais, passa a ser um fim em si mesmo e transforma-se num instrumento de ação política, de ajuste de contas, de bota-abaixo de pessoas, relativamente às quais passa a existir uma verdadeira presunção de culpa e em que qualquer resultado que não a condenação do sujeito só será possível por via da ineficiência do funcionamento dos Tribunais, tal foi o enérgico desfile na passerelle da comunicação social das provas da acusação.
E quando se pensa que este cenário já não pode piorar, eis que aqueles que juraram defender a constituição e princípios tão importantes quanto a presunção de inocência entram em cena, se atiram muito para além do apuramento de responsabilidades políticas e se prestam ao sinistro papel de guarda pretoriana das investigações judiciarias, tubos de ensaio das futuras acusações, destrunfando testemunhas e arguidos em inquéritos parlamentares com honras de transmissão na AR TV que antecipam os julgamentos na justiça e afinam o tiro dos libelos acusatórios.
Então quando, finalmente, um dia, à revelia de qualquer controle temporal, a investigação se cansa de se mastigar a si própria e decide que é tempo de pôr fim a si mesma, entrega-se aos Tribunais para exercer justiça em nome do Povo aqueles mesmos esfrangalhados arguidos que o Povo já condenou!
Agora alguém que os absolva. Naturalmente se for capaz!