Na sequência das tristes sequelas a que vimos assistindo no domínio das nossas instituições de cultura e arte, a divisão entre quem faz de conta que nada aconteceu, e quem rápida e/ou expeditamente vem a terreiro, marca os dois extremos das reações aos, como se pode dizer, “acontecimentos”.

(Duas notas em parêntesis: 1. Vá lá, ainda não se estendeu o uso da palavra “evento” a este tipo de factos; 2. Falar em “acontecimentos”, para parte da minha geração, conota uma dimensão forte aos factos em causa.)

Os “acontecimentos”, dispensando-me de mais uma tentativa de descrição (nunca seria neutra), reportam-se essencialmente a dois “casos” (“caso” é também uma palavra de sentido forte…): o “caso Mapplethorpe” e o “caso modelo de gestão dos museus”.

Em boa verdade, Mapplethorpe foi sempre “um caso”, como muita gente tem referido, estranhando a eventual sugestão de que programá-lo não tivesse em conta a especificidade, quer da sua obra, quer do histórico de reações à mesma. Neste histórico, o “caso” com o National Endowment for the Arts (NEA), em 1989 (a exposição “The Perfect Moment”), é uma espécie de clássico da contemporaneidade, passe a contradição, pondo em causa, à maneira norte-americana, o apoio público às artes, em nome dos “bons costumes”.

Recorde-se que o NEA fora criado em 1965, como parte da construção da Great Society do presidente Lyndon Johnson. Não faltam exemplos, desde então, de o tentar suprimir. Talvez os esforços de Reagan sejam os mais reconhecíveis, porque estão ligados ao tempo de instauração deste neoliberalismo desenfreado que vivemos, mais do que dirigido a uma iniciativa – um “escândalo”, um “caso” – em especial; e porque, naturalmente, foram retomados por Trump.

Portanto, a designação de “caso Mapplethorpe” não é muito feliz, já que aponta para o próprio artista como epicentro, quando o que está em causa é um triste processo de desnorte institucional na nossa cultura e nos seus governos. Olhando para o que foi escrito e dito, talvez devesse chamar-lhe “caso Serralves”, ou “caso Ribas”, ou “caso Ana Pinho”, ou mesmo “caso Pacheco Pereira”, já que, a certa altura, se foi instrumentalizando a ideia de censura…

(Novo parêntesis: lembram-se de Sousa Lara, então subsecretário de Estado da Cultura de Santana Lopes, e da exclusão do “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de Saramago, à candidatura ao Prémio Literário Europeu, em 1992? Recomendo a memória e atualização na entrevista de Joana Stichini Vilela, no Observador, no ano passado).

De caso em caso, este já vai na visita à exposição, nem sei se exigida, se pedida, se apenas expectada, pela Comissão Parlamentar de Cultura antes de se pronunciar a seguir (provavelmente, deveríamos todos escusar-nos de falar antes de ver a exposição – não entendo, confesso!). Se caso há, é o de que ficámos todos muito mal nos vários retratos: do Ministério a Serralves, passando pela Assembleia da República, a Câmara do Porto (com o presidente tão afoitamente a exigir explicações e a fazer ameaças), a vários artistas e intelectuais (com a precipitação de acusações em modo pouco reflectido…).

E nem faltou uma reportagem, meritória e até urgente se não fosse a triste oportunidade sobre a separação entre Serralves e o bairro da Pasteleira. Um incêndio, portanto (com achas que não são apenas de hoje), no qual, mais uma vez, se sucedeu uma confusão lamentável entre posições pessoais e posições institucionais, muito pouco edificante para todos nós, para as pessoas em causa, para as instituições que representam e para a imagem que construímos do Portugal democrático.

Infelizmente, não ficamos por aqui. As mediatizações em torno do projeto para o novo modelo de gestão dos museus (e monumentos, palácios e sítios arqueológicos, insisto) continuam pouco profícuas, na minha opinião. Concretamente, o modo como algumas informações vêm a público não concorrem para a ética da discussão, antes traduzem digladiações públicas no seio da hierarquia dos organismos da mesma tutela – como aconteceu com a grave denúncia do diretor do Museu de Arte Antiga (MNAA).

Subscrevo fortes dúvidas, não deixo de me questionar sobre o modo como se tem apresentado e discutido o modelo, e, acima de tudo, sobre a falta de clareza que o envolve (para lá da ideia, que creio assaz consensual, de que é preciso mudar rapidamente o estado de colapso a que chegaram os nossos museus).

A certa altura, porém, é difícil para o comum dos mortais (i.e., sem informação privilegiada, como se diz) distinguir trigo de joio no que respeita ao Ministério da Cultura, à Direção-Geral do Património e ao Museu Nacional de Arte Antiga… e, claro, ao que esteja em causa no próprio modelo proposto!

Pelo meio destas tormentas, Helena Almeida. Recordemos e celebremos essa Artista com letra maiúscula.

Termino: é verdade que, como Enrique Vila-Matas escreveu, “Kassel não convida à lógica” – mas talvez possa ajudar-nos a encontrar a lógica do mundo.