Até ao último segundo, quer-se sempre acreditar que não passa de bluff de fanfarrões: apesar de todos os sinais dos serviços secretos norte-americanos, que não podiam ser mais claros, a Europa acreditou sempre que o presidente russo, Vladimir Putin, não passava de um jogador de poker entediado. Afinal, no fim da noite, somos todos europeus. A 24 de fevereiro do ano passado, a Europa acordou aterrorizada para a evidência de que Putin trocara o poker pela roleta russa e os tanques já cruzavam a fronteira com a Ucrânia.
Afinal era verdade: dos 14 países que a antiga União Soviética trouxe ao mundo a partir de 1991, a Ucrânia era uma espécie de filho a quem o pai iria impor o regresso pródigo ao lar, depois de ter recebido de braços abertos, uns anos antes (em 2014), a Crimeia – um disparate desnecessário se Nikita Khrushchov não fosse um exaltado.
Nos primeiros dias, Putin – que havia dito que o conflito se iria circunscrever ao Dombass, no leste da Ucrânia – fez avançar os tanques sobre Kiev, a capital, a muitas centenas de quilómetros da fronteira. Ficava evidente que os avatares do homem que uns anos antes tinha blindado a sua permanência no Kremlin (recorrendo a um referendo que não deixou dúvidas sobre a vontade dos russos expressa nas urnas e sem grandes evidências de batota) iam muito além do Dombass.
Entretanto, em Kiev, a Europa olhava para Volodymyr Zelensky, um ex-comediante principalmente conhecido por dar albergue a um filho de Joe Biden que teria uns negócios nesse remoto fim-de-mundo. Era presidente, é certo, mas que pode um ex-comediante perante um ex-operacional do KGB e um exército aos tiros numas querelas de baixa intensidade contra o Exército Vermelho?
E subitamente a coluna de centenas de tanques, camiões, jeeps e o que mais tivesse rodas e um motor, parou. À espera, previram os analistas militares europeus, que dificilmente se deixam enganar, que o ataque em pinça tivesse lugar: a coluna móvel a direito sobre Kiev, uma segunda coluna a partir do norte depois de atravessar as aprazíveis terras da Bielorrússia e a terceira coluna pelo sul, depois de uma ida a banhos ao Mar Negro.
Muitos meses volvidos, não foi nada disso que sucedeu. O ataque em pinça falhou, o ex-comediante é agora um chefe militar em que os Estados Unidos e os seus aliados depositam todos os créditos e os combates prosseguem assumindo um caráter quase regional – quase uma caricatura face à inicial marcha do império sobre a capital inimiga – confinados ao Dombass.
Não parece ser descabido assumir-se que o poderoso exército russo tem pouco de poderoso – como tinha tanto de frágil em 1941, antes de escorraçar as tropas de Hitler num tropel estropiado Ucrânia fora, de regresso a casa. Mas parece ser demasiado temerário apostar tudo na sua ineficácia atual – até porque, entretanto, Vladimir Putin decidiu passar a esgrimir o ‘trunfo’ do armamento nuclear. Mais uma vez, a Europa não quis acreditar – mas desta vez as informações dos serviços secretos norte-americanos não deixavam margem para erro.
Entre um e outro combate, a Europa, convencida que nunca mais tinha estado em guerra desde 1945 (uma olhadela num mapa permite perceber que os Balcãs são Europa e foi lá que tudo começou em 1914), hesitava entre um comprometimento mais profundo e o depósito nas mãos dos Estados Unidos da função de nos defender.
Optou pela segunda hipótese. Sem um exército comum, sem independência energética e ainda na ressaca de ter percebido que nem a porcaria das máscaras que salvavam da Covid-19 era capaz de produzir, que mais podia fazer, a Europa, senão mendigar proteção? Foi isso que a Europa fez, e foi aí que começaram os primeiros desentendimentos: a Alemanha não queria envolver-se, o Reino Unido queria envolver-se muito e a França fazia de conta que mediava entre os dois, passando pelos pingos da chuva sem se molhar. Estas cenas de hesitação haveriam de repetir-se com a questão dos tanques de guerra, voltaram a acontecer (estão a acontecer neste momento) por causa dos caças de combate e ainda hão de acontecer por causa de outros artefactos bélicos – esperemos que não! Ao mesmo tempo, tudo o que era chefe de Estado e de governo na Europa tratava de arranjar uma forma de escapar por umas horas até Kiev para umas selfies com Zelensky e uns títulos de jornal simpáticos – mas daí a mandar os tanques e os caças, que é o que os ucranianos desesperam de pedir, vai um grande passo. Pelo meio, a Rússia desligou as torneiras dos gasodutos, a Europa suspirou de alívio por ter deixado de financiar a guerra (podia ter sido a própria Europa a fechar as torneiras do lado de cá, mas parece que ninguém se lembrou), e a Turquia tratou de encontrar uma forma de fazer sair os cereais ucranianos da própria Ucrânia.
Da Turquia surgiam também os sinais mais claros de que alguém estava a fazer alguma coisa por promover negociações para o fim da guerra ou pelo menos um cessar. Como era também da Turquia que partiam indícios de que é possível fazer qualquer coisa para impedir a total dependência da Europa face ao gás que só chega ao seu território por barco. A mesma Turquia que está há décadas à espera para entrar na União Europeia.
Quieta no seu torpor, a Europa não pode fazer o que quer que seja que permita à Rússia entender que a guerra já não é apenas com a Ucrânia. Salvo melhor opinião, Vladimir Putin está-se borrifando para isso: fará o que entender, quando entender e da forma que entender – e a única linha vermelha que respeita não é uma qualquer que os europeus lhe queiram impor, mas aquela que a Casa Branca decidir.
Enquanto se encolhe, a Europa vê países como a China – um antigo parceiro que os Estados Unidos transformaram em inimigo e que a Europa trata de escorraçar porque assim lhe mandaram fazer – ou o Brasil, ou até o improvável Israel a fazer coisas, o que quer que seja, para tentar encontrar um caminho para o fim da guerra. Dentro de um ano se verá o que sobra deste medo todo de existir.
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