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Lembra-se da última vez que bebeu uma água e disse “uau, que delícia?”

Manuel Antunes da Silva é geólogo e trabalha com águas minerais e de nascente desde 1991. Consultor numa empresa que as produz, aguçou o gosto e tornou-se, em 2018, no primeiro “water sommelier” português, após a sua passagem pela Doemens Academym, na Alemanha. No futuro, ambiciona criar uma “carta de águas” (muitas, aliás) e vê nisso uma revolução de mentalidadades.
20 Agosto 2023, 13h36

Imagino que a maior parte das pessoas reaja de forma intuitiva quando diz que gosta ou não de uma dada água…
Essa é a base de tudo. Temos de consumir aquilo que gostamos. [sorriso] Mas diversificar sempre. As águas não são todas iguais e, funcionando como um complemento dietético para o nosso dia a dia, nenhuma delas tem tudo aquilo que nós necessitamos, como, por exemplo, bicarbonato, magnésio, etc.
As nossas águas minerais e de nascente são todas ótimas, mas tal como não devemos comer sempre salada ou hambúrgueres, devemos variar também no tipo de água que consumimos.

O que torna cada água única?
Na escola aprendemos que a água é inodora, não tem sabor… Ora, não é bem assim. [sorriso] Vou dar uma explicação partindo dos vinhos, pois as pessoas estão mais habituadas a pensar, ou pelo menos, a ter a noção de que o vinho varia consoante a casta ou as castas utilizadas, consoante o tipo de solo onde as vinhas são plantadas e, por isso, também há uma série de questões ambientais que impactam a produção do vinho. No caso da água, há um terroir que tem a ver com o tipo de rocha onde ela circula em profundidade. E temos águas a circular centenas de anos em profundidade, em contacto com a rocha, e é das rochas que vão absorver os elementos que as constituem. Mesmo águas semelhantes, que circulem no mesmo tipo de rocha mas em locais diferentes, ou dependendo do tempo em que estão em contacto com a rocha, vão ter, necessariamente, uma mineralização diferente, assim como um sabor distinto. E o sabor tem fundamentalmente a ver com os elementos que constituem a água. E mesmo nas águas de baixa mineralização – que são aquelas águas, por exemplo, dos quartzitos, e temos várias em Portugal – sentimos não propriamente o sabor de determinado elemento que constitui a água, mas sim a leveza da mineralização. Sentimos em muitas delas a tal frescura, mesmo a água estando à temperatura normal. [sorriso] Em função desses elementos, poderemos decidir qual gostamos mais e qual gostamos menos.

Regressa a alguma água em particular?
Regresso com mais frequência às marcas com que costumo trabalhar, faz parte do ofício. [sorriso] Quanto ao gosto, volto sempre à questão do tipo de rocha e do tipo de enquadramento litológico de cada uma das águas. Temos águas com uma circulação de dezenas de anos, e essas terão, à partida, menor mineralização do que as águas que têm uma circulação de muitos anos. Em termos de tipologia de água, os opostos de certa forma atraem-se. Temos as águas de muito baixa mineralização e, dentre essas águas, tenho duas ou três preferidas. E também gosto muito das águas gasocarbónicas de elevada mineralização, ou seja, aquelas que nascem com o seu próprio gás. [sorriso] Mas quero realçar que, para um país da nossa dimensão, temos muitas águas disponíveis no mercado, o que é fantástico e quer dizer que temos um meio ambiente saudável em Portugal. [sorriso]

A regulação e o controlo de qualidade são eficientes?
Se alguma destas águas estivesse sujeita a algum fator contaminante, pura e simplesmente, não seriam colocadas no mercado. Temos uma regulação exigente da parte das entidades de tutela, quer na captação da água, quer como produto final, quer ao longo de todo o processo. Tudo isso é muito regulado e muito analisado, quer internamente pelos próprios produtores, quer externamente pelas entidades de tutela. Por isso, repito, o facto de um país da nossa dimensão ter tantas águas com esta qualidade só quer dizer que a indústria faz bem o seu trabalho, como o meio ambiente onde elas se inserem tem de, obrigatoriamente, ser excelente.

A água é um recurso cada vez mais escasso…
Sim, e importa realçar que se todas as águas minerais e de nascente são, por si só, uma raridade – porque apenas 0,7% de 2,5% de toda a água no planeta é potável e extraível pelo ser humano –, então, estas águas de que estamos a falar são uma percentagem ainda mais ínfima desses 0,7%. No fundo, são uma raridade. E dentro desta raridade que são as águas minerais, temos as águas gasocarbónicas que ainda mais diferentes são. Tal como as águas que não são consumidas enquanto águas engarrafadas, as sulfúreas, por exemplo, que têm um cheiro intenso a enxofre e são usadas nas termas, também são uma raridade.

Nas provas que organiza, sente que os participantes têm consciência da importância deste recurso?
Tenho feito muitas provas de águas em escolas, e não só, para públicos muito diversos e é uma experiência muito interessante. Porquê? Porque as pessoas se apercebem das diferenças e do porquê das diferenças. Mas não posso deixar de dizer que somos privilegiados e muito ignorantes nesta matéria. Vivemos num cantinho do mundo em que temos acesso a água em qualquer sítio. E só isso é outra raridade. Se formos para África, América do Sul, e até para algumas zonas dos EUA, por exemplo, não há água disponível como nós a temos aqui, em Portugal, no dia a dia. Basta abrir uma torneira! Mesmo sabendo que essa água não é 100% natural, como as águas engarrafadas, mas sim tratada, a verdade é que está disponível e é uma mais-valia fantástica, à qual não damos o valor que deveríamos dar. Ora, é fundamental arranjarmos forma de a valorizar.

Algumas marcas importadas que se encontram na restauração são apenas uma questão de marketing, moda…?
Diria que tem a ver com a parte comercial. Se for a um restaurante italiano, encontra invariavelmente San Pellegrino e Acqua Panna, sem gás e com gás. E muitas dessas águas são colocadas no mercado como águas premium, de topo, e por ignorância, na minha opinião, algumas pessoas decidem comercializar essa água porque é tida como água premium. Depois, se tentarmos perceber o fenómeno, verificamos que a maior parte das águas são premium na garrafa, ou seja, tem a ver com o design. E fica por aí, porque a água que tem dentro não possui nada que a distinga como premium. Muito honestamente, acho difícil dizer que uma água é premium pelo formato como é comercializada. Isto porque as águas, por si só, são todas premium, tendo em conta as caraterísticas já mencionadas, por serem uma “raridade”. E acho que é aí que nos devemos focar.

Os consumidores leem a informação do rótulo?
É fundamental que perante uma água mineral natural, se leia o rótulo que diz o que ela é. Ora, a maior parte das pessoas não lê o rótulo das garrafas. nem sequer sabe distinguir entre uma água gasocarbónica e uma água gaseificada, ou que tem gás adicionado. São as três águas com gás existentes no mercado e o preço é que dita a compra, tal como acontece com as águas lisas. Na minha opinião, não faz sentido nenhum um garrafão de 7L de uma água lisa, por exemplo, que é uma raridade, como já falámos, ser vendido por um euro e tal. Isso não paga nem o PET, nem o rótulo, nem a asa, nem a cápsula, nem o transporte.

Que projeto gostaria de desenvolver num horizonte de médio, longo prazo?
Acho que, cultural e comercialmente, não estamos preparados para esta ideia… Gostaria muito de, à semelhança do que fazemos com os vinhos nos restaurantes, criar uma carta de águas e ter pessoas formadas a trabalhar no local que soubessem explicar as águas que estão a aconselhar para determinado prato, tal como hoje os sommeliers aconselham vinhos. Seria fantástico! Mas, para chegarmos a esse ponto, é necessária uma mudança de paradigma. É preciso mudar a forma como as pessoas encaram a água que consomem. O restaurante O Lar do Leitón, em Ourense, na Galiza, já passou as 160 referências na sua carta de águas. É um excelente exemplo de que é possível mudar mentalidades.

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