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Ler ficção ajuda a desenvolver raciocínios complexos

Plano Nacional de Leitura convida intelectuais de diversas áreas para “elogiar” a leitura. Desde instrumento de acesso à aprendizagem, a direito humano, passando pela leitura de ficção para desenvolver um raciocínio complexo, ler é preciso.
21 Novembro 2019, 06h45

O que acontece a uma pessoa que tenta ler um documento oficial do Ministério das Finanças ou do Banco de Portugal?! Muito provavelmente desiste ao fim de duas páginas, admite Ricardo Pais Mamede.

Na conferência do PNL2027 – Plano Nacional de Leitura, dedicada este ano ao “elogio da leitura”, o economista e professor no ISCTE-IUL falou da relação tensa, difícil, entre a Economia e a leitura. “Os economistas estão mal treinados para escrever para o grande público”, admitiu. Disse depois que, por norma, o economista escreve e fala economês, o que se deve não tanto a uma falta de leitura, mas a uma falta de formação em comunicação. “Aquilo que estudam não é acessível à generalidade do público”.
Na verdade, segundo referiu, o economista de hoje é um técnico habilitado a resolver questões técnicas, pelo que a sua formação está mais orientada para os números, para a econometria. “O incentivo que os economistas têm não é para ler. A Economia, enquanto ciência, prepara não para problematizar em contextos históricos, mas para resolver problemas com equações”, justifica.

Ainda assim, há sinais que atropelam factos. Como a criação recente de um clube de leitura por alunos do ISCTE, para o qual Pais Mamede foi convidado. E também o sucesso de “O Capital no Século XXI” de Thomas Piketty, publicado em 2013. “Um livro grosso, um tijolo que se lê muito bem”. Um best-seller escrito por um economista, que vendeu mais de um milhão de exemplares e do qual o próprio autor disse: “Escrevi este livro não para os políticos mas para as pessoas que leem livros. Afinal, são as pessoas que decidem o que os políticos fazem, e é mais importante convencê-las a elas”.

Piketty analisa as questões complexas da desigualdade que percorrem mais de três séculos de uma forma simples, recorrendo a referências literárias e a escritores como Honoré de Balzac e Jane Austin para ilustrar, por exemplo, temas como a herança. As suas descobertas transformaram o debate e as prioridades da reflexão sobre riqueza e desigualdade das próximas gerações.
Ricardo Pais Mamede deixa um conselho: “Saber ler fição é uma boa forma de desenvolver um raciocínio complexo. Todos os esforços para que se leia mais só vão reforçar a produção da boa ciência económica”.

 

Ler melhores conteúdos
A leitura é o principal instrumento de acesso à aprendizagem e ao conhecimento. O instrumento por excelência de domínio sobre a informação e a comunicação. “O desafio de hoje é gigante”, proclamou Pedro Oliveira, antigo diretor da revista Exame Informática, que há anos acompanha as novas tecnologias, na medida em que “as pessoas nunca tiveram tanto para ler, para ver e para ouvir”.

Exemplo. A cada minuto são carregadas no Youtube 300 horas de vídeo. Na sequência referiu algumas diferenças entre ler um livro em papel ou ler um livro no tablet. “No livro mergulhamos na história, imaginamos as personagens, seguimo-las… no tablet a nossa atenção é desviada para um mail ou mensagem que chega…”. Ainda assim, acrescentou, há muitos escritores que perceberam que têm de estar presentes nos novos formatos e cujas ideias são descobertas através de podcasts e só posteriormente é que chegam aos seus livros.

Por fim, sintetizou: “A mudança é uma constante e imparável. Isto vai ser cada vez mais rápido, vamos ler mais, vamos produzir mais coisas e vamos ler em mais formatos. O desafio é pensar como vamos levar as pessoas a ler os melhores conteúdos e os que são verdadeiros”.

Mas essa mudança pode ser vista como um sinal de esperança ou de apreensão? – questionou a jornalista Maria Flor Pedroso, moderadora do painel. A resposta de Pais Mamede e Pedro Oliveira foi a mesma: “Há sempre esperança”.

O terceiro interveniente no painel, João Luís Lisboa, professor na FCSH da Nova, explicou que a leitura como direito humano universal “só começou a existir a partir do momento em que se tornou um fator de exclusão”. Ou seja, a partir do momento em que se tornou um poder. Hoje em dia, não ler, i.e., não deter essa competência, é um fator de exclusão, o que significa que a conceção iluminista que relaciona formação e progresso social pode não ser completamente verdadeira. Porquê? Porque pode haver formação sem progresso social, mas não haverá progresso social sem formação.

O elogio da leitura
O elogio da leitura “como forma de enaltecimento do lugar que esta mantém no nosso tempo e da consciência do seu papel em benefício das sociedades” foi a temática da terceira conferência anual do PNL2027.

Os oradores presentes, entre os quais três antigos ministros da Educação, debateram a leitura como principal instrumento de acesso à aprendizagem e ao conhecimento, de domínio sobre a informação e a comunicação e de compromisso ético e cívico, sem esquecer a afirmação da liberdade e dignidade humanas.

Teresa Calçada, Comissária do PNL2027, destacou a propósito o trabalho levado a cabo por Guilherme d’Oliveira Martins – “deu muito de si à vontade de que as escolas tivessem bibliotecas” –, Maria de Lurdes Rodrigues – “uma parte da rede das bibliotecas que temos deve-se quando era ministra” – e Isabel Alçada – “desde sempre ligada às fases do plano”. E fez também questão de agradecer a todos os que contribuem para “a esperança no valor social da escrita e da leitura”.

Numa sociedade marcada por mudanças profundas e aceleradas, na qual oportunidades e riscos quase que andam de mãos dadas, nunca será demais enaltecer a leitura. Sem a palavra, a história e a ideia de humanidade não existem.

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