Poderá soar pesado designar os novos contrastes em democracia como “linhas de ruptura”, mas a força da expressão é apropriada, tanto pela sensação de fim de ciclo e reivindicação de mudanças drásticas por alguns sectores da sociedade, como pelo tipo de polarização extremada que marca o discurso público contemporâneo.

Para além das clássicas dicotomias entre esquerda e direita, espaço urbano e espaço rural, socialistas e capitalistas, progressistas e conservadores, ou entre democracia e autoritarismo, existem hoje novos motivos de divisão e de mobilização política muito mais complexos que, geralmente, passam ao lado do discurso mediático e das mais usuais interpretações dos analistas políticos.

Num contexto de intensa fragmentação social e diversificação de fontes de informação, as linhas de ruptura e motivos de mobilização que tentamos interpretar são cada vez mais fluídos e temporários. Ainda assim, destacam-se algumas tendências que ajudam a ler a realidade nacional.

Uma das actuais linhas de ruptura mais flagrantes na sociedade é a ruptura entre gerações. O eleitorado jovem sente-se mais cativado por desígnios de transformação, tanto no sentido das reformas económicas mais liberalizantes, como também no sentido nativista e popular, contra um Estado doutrinador que anula a identidade cultural do seu povo e que administra o destino da nação na base dos interesses de curto prazo.

Por sua vez, à esquerda, existe ainda um eleitorado jovem mobilizado em torno do discurso de emergência climática ou da denominada agenda woke, ainda que esta mobilização possa ser menos consistente e duradoura no longo prazo, por força da sua própria insuficiência temática.

No essencial, a ruptura geracional dá-se entre o espírito dos mais irreverentes, que sentem que já não têm nada a perder, e as gerações mais velhas, tendencialmente mais conformistas, que se agarram afincadamente àquilo que não querem perder de forma alguma.

O PS e o PSD (mas não só estes) deparam-se aqui com a primeira tarefa árdua, de conseguir falar e pensar um país renovado que apele aos mais jovens, sem assustar os mais velhos; de conseguir promover um pacto de gerações que não penalize os mais jovens em favor das preferências dogmáticas do passado.

Em segundo lugar, e para baralhar ideias que possam persistir de uma velha dicotomia entre o espaço urbano e o espaço rural, verifica-se uma ruptura em função da paisagem vivida na rotina diária e que engloba tipo de serviços usufruídos, ambiente da zona de residência, condições de transporte, percepção de segurança e senso de pertença em comunidade. Esta divisão é, possivelmente, aquela que alimenta mais confusão e incompreensão entre pessoas que vivem experiências radicalmente diferentes, até dentro da mesma cidade ou distrito.

Em função da rotina que vivenciam diariamente, alinham respectivamente em propostas políticas de transformações ou em propostas de continuidade, que acenam com promessas de um “país inteiro”.

Enquanto grande parte da população testemunha a asfixia fiscal e o contínuo desinvestimento na saúde, educação, transportes e ordenamento do território, outra parte do eleitorado tende a votar por fidelidade às suas antigas filiações partidárias (essa fidelidade explica que um partido como o PS se aguente relativamente bem, mesmo quando confiado a um líder inábil, desconcentrado, sem realizações no passado e sem projecto para o futuro).

Em terceiro lugar, destaca-se uma ruptura em função das atitudes em relação aos valores e às mudanças sociais. Esta linha de ruptura é interclassista porque não depende necessariamente do grau de conforto material possuído. A título de exemplo, o autor britânico David Goodhart celebrizou uma distinção neste sentido, referindo-se à diferença de atitudes das pessoas perante o cosmopolitismo e globalização.

O autor denominou de anywheres (qualquer lugar) os mais cosmopolitas, que preconizam valores sociais mais liberais e uma identidade mais difusa, descomprometida e indiferenciada.

Em contraste, os somewheres (algum lugar) seriam aquelas pessoas tendencialmente mais nostálgicas, que defendem valores mais arreigados, que reagem com estranheza às ameaças à sua identidade particular e que, muitas vezes, se sentem marginalizados pelas elites. Elites que, também no caso português, seja através da realidade ficcionada pelos meios de comunicação, ou através do domínio do “partido-estado”, perpetuam essa marginalização dos sectores da sociedade que não conseguem fazer ouvir as suas necessidades, como é logicamente previsto segundo a “lei de ferro das oligarquias”.

Sejam quais forem as sensibilidades de cada um, a consciência desta diversidade de inquietações e divergências é um primeiro passo para a compreensão mútua e para moderar frustrações e inimizades que teimam em crescer numa sociedade de nichos que foge ao contraditório.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.