“Às oito da manhã já o sol é quente, mas há sempre uma brisa e um pingo de chuva em flor que perfuma o europeu agoniadiço. Quem pôs esta loira angélica no chocolate humano do bonde? – A mesma mãe de raças que decorou de guarda-chuvas os braços roliços das negrinhas; isto é: a Bahia. Já se estiram no chão as sombras compactas das igrejas; um GABINETE DENTÁRIO alça a tabuleta em frente; cavam-se ladeiras profundas, calçadas coloniais. Salto do bonde ao Elevador (descer no Guindaste dos Padres seria muito mais poético), e, num abrir e fechar de olhos, passeio na Rampa do Mercado”.
Para os portugueses que assistiram à exibição da primeira telenovela brasileira no único canal televisivo que existia no ano de 1977, o Brasil adquiriu no imaginário nacional – ainda que não a cor – seguramente o som e o ambiente da Bahia dos anos 1920. “Gabriela, Cravo e Canela”, adaptada do romance de Jorge Amado, escrito em 1958, não está na génese do cliché (a palavra é do próprio Vitorino Nemésio) da Bahia, dado que “O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos” foi editado em 1954.
De qualquer forma, é possível que outros livros da obra anterior de Amado tenham contribuído para formar uma determinada ideia do nordeste brasileiro no espírito do açoriano; a este propósito, recordamos o saudoso “Bahia de Todos os Santos”, uma espécie de guia, em que o escritor brasileiro derrama todo o seu amor pela cidade – infelizmente a edição portuguesa está esgotada há muito. Fenómeno semelhante passa-se com a imagem que criamos de Cartagena das Índias através da leitura da obra do colombiano Gabriel García Márquez.
O Brasil é presença significativa na obra de Vitorino Nemésio, em particular nas crónicas, a que chamava o seu ‘jornal’, devido ao caráter tão pessoal desses escritos. “O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos” compila crónicas de viagem, a primeira ao país-irmão (onde viria a lecionar uns anos mais tarde, em 1958), e combina-as com poesia de feição brasileira, resultante da comoção inevitável do escritor com a outra margem lusa do Atlântico.
Tal como “Gabriela, Cravo e Canela”, o programa televisivo da autoria de Vitorino Nemésio, intitulado “Se Bem Me Lembro” e exibido entre 1970 e 1975, também marcou uma geração de portugueses, e o seu romance “Mau Tempo no Canal”, retrato portentoso da sociedade burguesa açoriana no início do século XX, foi considerado por David Mourão-Ferreira a “obra romanesca mais complexa, mais variada, mais densa e mais subtil em toda a nossa história literária”.
As obras completas de Vitorino Nemésio estão publicadas na Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Infelizmente, já nem todos os volumes estão disponíveis, havendo a lamentar uma falha imperdoável no acervo disponível: “Corsário das Ilhas”, com crónicas sobre os Açores.
Tagus Park – Edifício Tecnologia 4.1
Avenida Professor Doutor Cavaco Silva, nº 71 a 74
2740-122 – Porto Salvo, Portugal
online@medianove.com