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Mais uma ameaça ao Montijo: donos da ANA adiam investimentos

Face ao impacto da Covid-19 no tráfego aéreo mundial, o grupo francês Vinci Airports, que controla a gestora aeroportuária nacional, quer reduzir custos e retardar os investimentos em todos os países.
3 Abril 2020, 08h31

O projeto do novo aeroporto complementar de Lisboa, previsto para a base aérea do Montijo, poderá ser uma das baixas no plano de investimentos que a ANA tinha previsto para arrancar este ano, depois de o detentor da concessionária aeroportuária nacional, o grupo francês Vinci Airports, ter já anunciado publicamente que está a negociar o seu plano projetado de investimentos com as autoridades governamentais e aeroportuárias nos países em que está presente, em função do impacto negativo que a pandemia de Covid-19 está a ter na sua atividade, com quedas abruptas do tráfego de passageiros a nível mundial, em particular no passado mês de março. De tal forma que as últimas medidas no quadro do atual Estado de Emergência, anunciadas ontem pelo Governo, decretaram o encerramento total dos aeroportos nacionais durante a Páscoa.

Questionada pelo Jornal Económico, fonte oficial do Ministério das Infraestruturas e da Habitação, respondeu apenas que “a ANA não solicitou ao Governo qualquer adiamento dos investimentos em curso ou previstos”. Mas, apesar desta declaração lacónica, o cenário não deixará de estar em cima da mesa, dependendo muito da evolução da pandemia em Portugal e no resto do mundo, ou seja, da sua duração e da sua intensidade. Uma variável que ninguém pode controlar neste momento.

É, aliás, esse o sentido da resposta de fonte oficial da ANA à questão colocada pelo Jornal Económico: “Neste momento, a prioridade é combater a pandemia. Concluído o estado de emergência, o processo será retomado”.

A mesma fonte da ANA garante que “as obras nos restantes aeroportos vão continuar em curso”, estabelecendo, assim, uma distinção em relação ao projeto do Montijo.

Para fazer face à dramática perda de receitas do setor aeroportuário, com a maioria das companhias aéreas mundiais com as suas frotas em terra e a generalidade dos países a imporem restrições dos respetivos espaços aéreos, a Vinci Airports quer adiar o calendário de investimentos a nível global. Num comunicado, datado de 23 de março e difundido no site oficial da empresa, a Vinci garante que “está correntemente a ser implementado um plano para reduzir os custos operacionais e adiar investimentos em todos os aeroportos, em conformidade com as orientações das obrigações contratuais e aeronáuticas e as decisões governamentais”.

Nessa data, a administração da Vinci prometia mais pormenores para a assembleia geral da holding do grupo francês, na altura agendada para 9 de abril, na próxima quinta-feira. No entanto, sinal do momento muito conturbado e indeciso que todas as empresas e organizações vivem nos dias que correm, a Vinci anunciou ontem, 2 de abril, na sequência de uma decisão do respetivo conselho de administração, que essa reunião magna do grupo foi adiada. Sem que tivesse sido, para já, marcada alguma data alternativa. Portanto, também neste particular, as decisões estão em suspenso. Mas as feridas desta pandemia já são visíveis no grupo, uma vez que os seus responsáveis já admitiam na semana passada que não iriam conseguir os objetivos de aumentar os lucros e as receitas inicialmente previstos para 2020.

Investimento de 600 milhões de euros
Segundo as últimas contabilizações vindas a público, o investimento que a Vinci Airports teria de aplicar no projeto do novo aeroporto do Montijo seria de cerca de 600 milhões de euros, incluindo acessibilidades. Um valor que sobe para cerca de 1,3 mil milhões de euros com as obras em curso para a reestruturação do aeroporto da Portela. Diversos especialistas do setor contactados pelo Jornal Económico, que solicitaram o anonimato, sublinharam que as relações contratuais entre o Estado português e a concessionária ANA se “transformaram num labirinto jurídico muito difícil de entender e de explicar”. Ou, por outras palavras, “num emaranhado em que até alguns juristas perdem o fio à meada”.

Depois de um contrato inicial em 2010 (decreto-lei nº 33, de 14 de abril), em que o prazo de concessão era de 40 anos, com hipótese de prorrogação, surgiu depois, em 2012, um contrato de concessão que aumentou esse prazo para 50 anos, também com hipótese de prorrogação. No primeiro documento, a reversão da concessão por parte do Estado podia ser acionada, em função de condições especificamente estabelecidas, ao fim de 15 anos. No segundo documento, o Estado só pode exercer essa opção ao fim de 25 anos.

Depois disso, já houve um memorando de entendimento entre as duas partes, em 2017, a definir o Montijo como opção para o novo aeroporto de Lisboa, quando no contrato inicial a alternativa imposta era o Campo de Tiro de Alcochete.

Mas os diversos especialistas contactados pelo Jornal Económico são unânimes ao referir que a existência de uma pandemia (o termo utilizado no contrato, no capítulo XIV, é ‘epidemia’) é uma das condições para a concessionária poder argumentar com a desoneração das suas obrigações contratuais perante o Estado português, incluindo o plano de investimentos já assumido. E que não se limita ao projeto do Montijo e se pode estender às obras de remodelação do aeroporto Humberto Delgado, por exemplo. Existe, inclusivamente, a hipótese de a Vinci, em função da perda de receitas emergente desta situação, vir a reclamar um pedido de reequilíbrio financeiro junto do Estado português, sendo esse uma hipótese extrema.

Verdade seja dita que esta não é a única ameaça que impende sobre o projeto do novo aeroporto previsto para o Montijo. Há duas autarquias da Margem Sul, Moita e Seixal, que podem vetar o projeto, o que levou o Governo a encetar diversas rondas de negociações com essas autarquias, até ao momento sem qualquer efeito visível. E há queixas que querem travar este empreendimento, na justiça nacional e nas instâncias comunitárias, colocadas quer por associações de cidadãos, quer por organizações ambientalistas, cujo desfecho é imprevisível.

Carlos Matias Ramos, ex-presidente do LNEC – Laboratório Nacional de Engenharia Civil e ex-bastonário da Ordem dos Engenheiros, é um dos principais opositores conhecido a este projeto. Em declarações ao Jornal Económico, o líder da ‘Plataforma BA-6 Não’, contestatária deste empreendimento, sublinha que, no seu entender, “o que a Vinci quer é aproveitar a Portela ad aeternum, pelo que não me espanta que tente também aproveitar a situação de pandemia para adiar este investimento”.

Polémicas à parte, a ANA está a sofrer na pele os efeitos da quebra de tráfego aéreo mundial, que a Vinci Airports calculou em cerca de 40% face ao período homólogo nas primeiras três semanas de março, garantido que o impacto foi mais negativo nos dias subsequentes. Para tentar enfrentar esta conjuntura negativa, no passado dia 31 de março foi conhecido o plano da administração da ANA, em que propõe aos seus trabalhadores licenças sem vencimento, redução temporária de 20% do período de trabalho durante três meses, gozo antecipado de férias relativas a 2020, corte de 20% nos salários da comissão executiva da empresa, suspensão da atribuição de prémios durante a crise, suspensão da revisão da tabela salarial e suspensão da atualização do subsídio de refeição até ao final do ano.

Notícia publicada na edição semanal do Jornal Económico de 3 de abril

Atualizada às 10h01m de 3 de abril com resposta da ANA

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