[weglot_switcher]

Médico-poeta português em destaque no “The Guardian”: “Como os poemas, cada paciente é único”

O médico acredita que a poesia tem a capacidade única de ajudar os estudantes a ligarem-se holisticamente com os seus pacientes, para não os verem apenas como um problema médico que precisa de ser tratado.
17 Fevereiro 2024, 15h12

João Luís Barreto Guimarães, médico e escritor de poesia, está hoje em destaque no jornal britânico “The Guardian”.

O vencedor do Prémio Pessoa 2022, é médico de cirurgia reconstrutiva no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, sendo autor de mais de 10 livros, publicados em várias línguas.

O médico foi o responsável por criar a cadeira de Introdução à Poesia no plano de Mestrado Integrado em Medicina do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto.

“Hoje em dia, os médicos não têm tempo para parar e pensar, e tudo é rapidamente reduzido à técnica e à mecânica. O que eu tento mostrar aos estudantes é que, assim como os poemas, cada um dos seus pacientes é único”, disse o médico ao jornal. Quando não está a operar, gosta de estar sentado na secretária da sua casa a escrever os seus poemas.

O médico acredita que a poesia tem a capacidade única de ajudar os estudantes a ligarem-se holisticamente com os seus futuros pacientes, para não os verem apenas como um problema médico que precisa de ser tratado.

“Por isso, faço com que olhem para os poemas que falam de empatia, compaixão, solidariedade e outros valores humanos que os médicos deveriam mostrar quando estão à frente de um paciente”, conta.

A sua cadeira inclui vários poetas-médicos, como o cirurgião português Júlio Dinis; o pediatra norte-americano William Carlos Williams; o patologista alemão Gottfried Benn; o imunologista checo Miroslav Holub.

O médico já recebeu convites para lecionar noutras universidades médicas em Portugal. Lá fora, a universidade Pompeu Fabra em Barcelona introduziu recentemente um curso de literatura no segundo ano do curso de medicina.

Numa das aulas a que o jornal assistiu, o médico cita o seu próprio poema História Clínica, que fala de uma mulher que sofre uma dupla mastectomia, mas que também aborda anos de violência doméstica por parte do marido, fazendo um jogo de palavras com medalha: tanto pode referir-se aos seios da paciente como às marcas da violência doméstica. No fim, como consequência da mastectomia, o marido deixa-a. Mas “está enfim livre de perigo”: bem de saúde e com o agressor já longe.

O cheiro do corredor
O
corredor de hospital onde se aguarda a noticia é
escuro
e abafado. As cadeiras de plástico (polidas e
pacientes) aceitam familiares com
um único objectivo: «positivo
ou negativo?» O medo
bebe um cigarro
(fuma o terceiro café)
julgando furtar-se ao cheiro que habita
o corredor –
um cheiro iniludível que invade a memória
acerbando a angústia que antecede
o veredicto: «negativo
ou positivo?» As mãos
tecem litanias
algemadas a um terço (a esperança é o nervo
quando a crença é o músculo) e o
cheiro do corredor fica colado à resposta que
chega pelo fim do dia
devolvendo ordem ao mundo: «Negativo.»
«Negativo?»
«É negativo.»
de Nómada (2018).

Cortejo fúnebre
Quando o carro fúnebre passou a morrer
frente ao Café
enterrei a atenção num jornal receando conhecer
aquele nome ao comprido no seu
último passeio pela vila. Os mais velhos
no Café
ousaram até à vidraça comentando
circunstâncias sobre a vida que o
morto tinha. O
sino da torre da igreja soava
tão alto lá fora
os acordes pareciam flechas
alvejando o salão. A
morte não é tudo
na vida pelo que no instante seguinte
todo o povo dispersou e os mais velhos
no Café
voltaram ao dominó
cotejando entre si a última ida ao médico
o mais recente sinal ou
sintoma de doença.
Espreitei a rua para ver se a
morte já ia longe
ainda sentia o sino a latejar na cabeça
dessa vez
(tive a certeza)
tentou ver se levava alguma
coisa de mim.
de Rés-do-Chão (2003)

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.