A indústria das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) em Portugal está numa fase de transição para meses mais animadores do que foram os últimos, marcados por lay-offs em gigantes do sector e unicórnios e alguma cautela nos investimentos devido ao aumento das taxas de juros e do contexto global de incerteza económica. O mercado vai desacelerar este ano para um crescimento de apenas 0,8% em 2023, o que representa um investimento de 5,3 mil milhões de euros, segundo as previsões recentes da International Data Corporation (IDC).
A motivar este abrandamento está também o ajuste nas vendas de computadores e outros equipamentos eletrónicos, como tablets, wearables, telefones e monitores, segundo a estimativa apresentada pela consultora tecnológica na 26ª edição da conferência “IDC Directions”. Ou seja, após dois anos (2021 e 2022) de crescimentos anuais expressivos (17,8% e 4,4%, respetivamente), a febre dos gastos em hardware que se verificou na pandemia é algo que ficou no passado, porque há menos disponibilidade financeira para investir e menos também para adquirir.
Ainda assim, há boas notícias. Além de a aposta em soluções digitais mais ligadas à automação e machine learning ter conseguido que a trajetória de crescimento se mantivesse num 2023 a meio gás, 2024 antecipa-se mais animador, com um crescimento de 4-5%. A maioria dos investimentos tecnológicos estão a feitos em tecnologias da chamada Terceira Plataforma [cloud computing, Big Data, cibersegurança e Inteligência Artificial (IA)] e é sobre elas que nos debruçaremos nas próximas páginas.
“A primeira mensagem é clara: há cada vez mais integração entre físico e digital e não se fala tanto de transformação digital, mais em negócios digitais. Hoje vemos as organizações a pensarem digital first, como chamamos, a terem negócios digitais que fazem uma integração entre o físico, o negócio tradicional e o digital, que é transversal a todos os sectores”, explica ao Jornal Económico (JE) o country manager da IDC Portugal e vice-presidente do grupo de consultoria tecnologia.
“Claro que alguns sectores mais B2B ainda estão a fazer esse caminho, mas outros, como banca, telecomunicações, media e retalho estão muito avançados. Hoje já cerca mais de 30% da faturação das empresas vem de produtos, serviços e experiências digitais. Acreditamos que essa percentagem passe para 40% em 2025”, afirma Gabriel Coimbra, em declarações à margem do “IDC Directions 2023”, que reuniu cerca de três mil pessoas no Centro de Congressos do Estoril a 28 de setembro.
Há, essencialmente, três áreas core, segundo este relatório: a cloud (armazenamento na nuvem), a cibersegurança e a IA. O cloud computing, como é o modelo de consumo de referência, porque reúne todas as soluções tecnológicas, deverá atingir os 855 milhões de euros em 2023, mais 20,6%, de acordo com os cálculos da IDC. Para a segurança de informação – que representa 7,5% do orçamento anual para TIC nas empresas – serão outros 302 milhões de euros em 2023 (+13,9%). Na analítica e dados, a IDC acha que as organizações vão canalizar um investimento de 370 milhões de euros, este ano (+11,3%).
Inteligência Artificial generativa, “a criança que irá para a universidade”
“Estas tecnologias agora são toddlers [crianças], mas vão crescer e depois vão para a universidade e é aí que se sentirão os verdadeiros efeitos”. A ideia partilhada pelo empresário e filantropo norte-americano Mark Benioff, num encontro com jornalistas onde esteve o JE, resume o que se antevê para a área da IA generativa, que experienciou um ímpeto quando o ChatGPT começou a ser utilizado em massa pelos cidadãos. O que as grandes multinacionais do sector estão a fazer agora, com o apoio dos verdadeiros cérebros nesta tecnologia (ou ciência), é extravasar essa massificação para as empresas, mas para tal também precisam de investir internamente.
Não é só L.L.M. Não passou tudo a ser IA generativa – CGI
A consultora tecnológica CGI, por exemplo, anunciou no final do verão que prevê fazer um investimento de mil milhões de dólares (cerca de 9,5 milhões de euros) ao longo dos próximos três anos para expandir o número e a especificidade dos seus serviços e soluções de IA, fazer a integração na propriedade intelectual, assinar parcerias contratar e formar trabalhadores a nível mundial, consolidar a aproximação às universidades e reforçar o programa global de startups (Unicorn Academy).
Questionado sobre se vão construir modelos próprios, Miguel Guedes, diretor de Consultoria Especializada em Banca e Seguros na CGI, confirmou e argumentou que “grande parte dos clientes, principalmente na banca – muito regulada – existe uma preocupação muito grande com a confidencialidade e proteção dos dados”. “Há uma grande resistência. Quer-se muito [investir em IA], mas não se quer utilizar ferramentas já existentes ou API diretas para GPT-4. Portanto, estamos a criar um ‘ChatGPT’ interno junto das instituições”, conta, revelando que é algo que está a ser feito em bancos noutros países e sobre o qual já estão a ser consultados em Portugal.
“A ideia é que isto também se traduza nos tais IP específicos, que são modelos que vão sendo treinados. Não é só L.L.M. A IA não parou para passar a ser só IA generativa, convém dizer”, ressalva Pedro Machado, diretor de Serviços de Consultoria em Energia e Utilities na CGI. Ainda assim, reconhece que durante três ou quatro meses houve um “hype tão grande” que parece que, de facto, o Planeta parou. “Nós sentimos esse impacto no sector de utilities. Tivemos áreas que pararam completamente investimentos, nomeadamente core, para se dedicarem a isto. É normal… É uma primeira reação. Felizmente, está tudo a reposicionar-se”, garante.
Big Data para estar mais próximo do cliente
A francesa Schneider Electric começou a investir em tecnologia para o departamento de apoio ao cliente em 2010, quando sentiu que precisava de uma solução de Customer Relationoship Management (CRM). Hoje, a equipa de vendas é capaz de gerar até 500 oportunidades por dia (uma tarefa que antes demorava três semanas). “Utilizando o Sales Cloud e o CRM Analytics, criámos uma «Fábrica de Oportunidades Digitais» que utiliza a IA para encontrar perspetivas de vendas que tenham uma necessidade não satisfeita ou oportunidades de white space”, disse ao JE a vice-presidente sénior de Vendas e Apoio Digital na Schneider Electric, que esteve no evento ‘Dreamforce’ em São Francisco. “Como é que funciona? Primeiro, são identificadas e classificadas, depois atribuídas ao profissional de vendas apropriado, entretanto o Einstein Discovery classifica as oportunidades em cada etapa de vendas e os representantes de vendas veem as recomendações geradas por IA”, esclareceu Audrey Hazak.
A executiva da Schneider Electric diz que uma das ferramentas permitiu aos 2.500 funcionários do apoio ao cliente poupar oito minutos por dia cada um. “Em menos de dois anos, 30 mil colaboradores em 70 países passaram a recorrer ao Sales Cloud para impulsionar o desempenho das vendas e dos serviços em todo o mundo. Ao longo do tempo, adicionámos o Service Cloud, o Community Cloud, a Platform e mais de 30 aplicações do ecossistema Salesforce através da AppExchange e temos agora um total de mais de 43 mil utilizadores”, conta. No caso IA generativa, está a ajudar a multinacional de serviços elétricos a criar conteúdos de marketing, participar em conversas em direto com os clientes e – claro está – fazer recomendações personalizadas.
O “S” dos critérios de sustentabilidade
A tecnologia verde e com responsabilidade social é outro dos focos do mercado. Observemos o exemplo dessa conferência da Salesforce, a “Dreamforce”, que se realiza todos os anos nos Estados Unidos. A edição de 2023 – a 21ª – foi a mais sustentável de sempre, de acordo com o CEO. De facto, a tecnológica conseguiu manter longe do recinto aproximadamente mais de 100 mil garrafas de plástico, ao substituí-las por embalagens amigas do ambiente, e alega que conservou dez milhões de garrafões de água ao disponibilizar menus com opções de refeições sustentáveis sem carne bovina ou suína.
“O evento tem várias dimensões, nomeadamente o ambiente. Há um envolvimento em torno da floresta, do conceito de comunidade em que lá fora há pessoas a plantar flores ou a montar bicicletas para oferecer aos miúdos nas escolas com mais dificuldades. Chegas e contribuis, ao lado de quem não conheces. Desde a sua fundação, a empresa a questão do 1%: oferecer 1% à sociedade, 1% do tempo, oferecer 1% e do equity. Só se percebe bem este sentimento de partilha vivendo”, referiu ao JE o country leader da Salesforce em Portugal, Fernando Braz.
Certo é que as iniciativas juntaram dezenas de pessoas em prol de um bem maior nos três dias da conferência e podem ser uma ideia a replicar deste lado do Atlântico, quiçá em cimeiras como a Web Summit – inclusive com o cardápio mais sustentável com quinoa e pernas de frango.
“Acelerem”, diz Bruxelas
A Comissão Europeia (CE) publicou a 26 de setembro o primeiro relatório sobre o estado da Década Digital, onde consta uma análise aos progressos da UE na transformação digital, cuja meta é tornar a comunidade única digitalmente mais soberana, resiliente e competitiva. Trata-se de uma avaliação – que será anual – ao desempenho europeu, centrada em quatro pilares principais: competências digitais, infraestruturas digitais, digitalização das empresas, incluindo o uso da IA e a digitalização dos serviços públicos (ver entrevista ao secretário de Estado).
“A mensagem do nosso primeiro relatório da Década Digital é clara: precisamos de acelerar os nossos esforços para alcançar as nossas metas até 2030. Agora é o momento de trabalharmos em conjunto para colocar a Europa na vanguarda da transição digital. Este é o significado das recomendações que hoje emitimos aos Estados-membros”, sintetizou o comissário europeu para o Mercado Interno, Thierry Breton, sobre este documento que inclui também a monitorização da Declaração Europeia sobre os Direitos e Princípios Digitais (Digital Decade Policy Programme – DDPP).
“Sem mais investimentos e incentivos, a trajetória de base projetada indica que, até 2030, apenas 66% das empresas utilizarão a cloud, 34% o Big Data e 20% IA. Além disso, com base nos dados mais recentes disponíveis, apenas 69% das PME da UE atingem um nível básico de intensidade digital, com progressos desiguais e insuficientes entre os Estados-membros”, alerta a CE, aconselhando os 27 a “aumentar a sensibilização para os benefícios da digitalização das empresas, bem como promover e apoiar os Polos Europeus de Inovação Digital (European Digital Innovation Hubs – EDIH)” se quiserem melhorar a sua adoção da tecnologia.
Precisamos de acelerar os nossos esforços para alcançar as nossas metas até 2030. Agora é o momento de trabalharmos em conjunto para colocar a Europa na vanguarda da transição digital – Comissão Europeia
É importante mencionar que o DDPP define três objetivos concretos para promover a digitalização das empresas: pelo menos 75% das empresas da UE devem adotar nas suas operações serviços de computação na nuvem, megadados e/ou machine learning; mais de 90% das PME deverão atingir pelo menos um nível básico de intensidade digital e o número de unicórnios (empresas com uma avaliação superior a mil milhões de euros) tem de duplicar.
Anti-hackers
A cibersegurança mantém-se como o escudo de todas estas tendências e terá até de ser reforçada, à medida que as máquinas se tornam tão ou mais inteligentes do que os humanos. Os dados oficiais e mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram que em 2022, 89,7% das empresas em Portugal utilizaram pelo menos uma medida para garantir a integridade, a disponibilidade e a confidencialidade dos seus dados e sistemas, embora a tradicional password se mantenha como a mais relevante (84%).
“54,4% das empresas declararam ter documentos sobre medidas, práticas ou procedimentos de segurança das TIC em 2022, sendo Portugal o quarto país da UE com a percentagem mais elevada”, lê-se no relatório do INE, publicado no passado mês de maio.
Em 2022, mais de um terço (33,7%) das empresas em Portugal definiram ou reviram os seus documentos sobre medidas, práticas ou procedimentos de segurança em doze meses, uma proporção superior à que foi verificada no total da UE (23,8%), concluiu o último “Inquérito à Utilização de Tecnologias da Informação e da Comunicação nas Empresas”.
Nesse plano de normas, a medida mais usada foi a autenticação por palavra-passe segura (84%), em linha com os outros Estados-membros, seguindo-se a cópia de segurança (backup) da informação noutra “gaveta”, que pode ser a famosa cloud (73,7%), e o controlo de acesso de rede (62,5%). Por outro lado, as empresas portuguesas optaram menos pelos métodos biométricos (12,3%).
As organizações estão mais conscientes deste perigo informático, porque também são mais atacadas e estão, cada vez mais online. O INE demonstra ainda que em 2022, quase todas (96,9%) as empresas utilizavam ligação à Internet banda larga, sendo que a conexão fixa no é a mais utilizada (95%), apesar de a móvel (85,7%) ter registado o maior aumento comparativamente ao período anterior (+17,2 pontos percentuais). O mesmo se verifica nos recursos humanos, com a indicação de que a proporção de pessoas ao serviço a quem são disponibilizados portáteis pela empresa, com Internet para trabalharem, aumentou quatro pontos percentuais e já representa 28,1% do staff.
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Um dos destaques na cibersegurança é a estagnação do crescimento dos ataques de ransomware (softwares de vírus informáticos que pedem resgates para recuperação da informação), conforme adiantou ao JE o Chief Technology Officer (CTO) de Campo e Comercial da Sophos. “O crescimento do ransomware tem sido bastante acentuado há cerca de uma década. Estamos neste jogo há cerca de dez anos e não vai desaparecer tão cedo. O que penso que estamos a começar a ver não é necessariamente um declínio, mas uma espécie de efeito estabilizador. Chegámos a um ponto em que cerca de dois terços a três quartos de todos os ataques são de ransomware. São muitos ataques”, realça John Shier.
“Este ano, por exemplo, vimos que numa investigação que 66% disseram ter sido atingidos por ransomware, número igual ao do ano passado”, mencionou, fazendo referência ao relatório ‘The State of Ransomware 2023’, que apresenta uma panorâmica mundial sobre este malware que a empresa de cibersegurança britânica detetou no último ano. Entre as principais conclusões está ainda a constatação de que a encriptação de dados em ataques de ransomware atingiu o nível mais alto dos últimos quatro anos (76% dos ataques) e que pagar o resgate duplica os custos de recuperação.
“Há um relatório diferente, chamado relatório ‘Active Adversary’, no qual analisamos a nossa resposta a incidentes. Ou seja, as pessoas que nos ligam quando têm algum problema – e mesmo aí é quase o mesmo número: para este ano foi de 68% e no ano passado foi de 71%. Então, estamos nessa média. Sinto que o veremos num futuro próximo, esse tipo de linha de base, dos ataques de ransomware, oscilando sempre em torno desse valor até que possamos fazer algo a esse respeito, até que realmente possamos paralisar o aspeto financeiro do ransomware”, disse ainda o Field CTO da Sophos.
É, provavelmente, impossível que uma TIC em Portugal consiga combinar todas estes verticais num negócio em constante transformação, porém se conseguir elaborar uma estratégia para, pelo menos, três deles terá mais-valias em relação à concorrência.
Artigo publicado no anuário Quem é Quem nas TIC em Portugal 2023-2024
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