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Mercados: A sala (de pânico) passou a ser em casa

A Covid-19 trouxe um duplo desafio aos gestores de salas de mercados e corretagem: o teletrabalho em simultâneo com a volatilidade em níveis máximos. Oito gestores explicam ao JE como operaram uma transição que dizem ter sido suave. Sentem falta do ‘buzz’ da sala, mas realçam que não falta trabalho. Presas em casa, muitas pessoas entram nos mercados à procura de oportunidades em tempos conturbados.
4 Abril 2020, 09h00

“Um ambiente de sala de mercados é muito difícil de replicar se não for com toda a gente em conjunto, toda a gente a transmitir informação, a falar, trocar opiniões”, explica Paulo Cruz, head of trading do Millennium investment banking, do BCP.

Esse ambiente agitado que estamos habituados a ver em filmes de Hollywood, como “Wall Street”, teve de ser dispensado na transição que Cruz e outros gestores de equipas de trading e corretagem em Portugal tiveram de operar na terceira semana de março. O surto do novo coronavírus criava assim um novo paradigma nos mercados financeiros: as salas de mercados passavam a ser nas salas ou nos quartos em casa.

“Já tenho mais de 30 anos de mercados e já passei por uma série de crises, nos anos 90, nas dotcom, e mais recentemente, em 2008, mas de uma coisa destas não tenho memória”, refere este experiente gestor.

“Passámos de uma situação em que a informação fluia e sabíamos ler o sentimento do colega à nossa frente, para uma rotina diferente, em que temos de continuar sempre a falar para não perdermos esse elo que é fundamental na sala de mercados”.

Steven Santos, head of trading platforms & brokerage no BiG – Banco de Investimento Global, concorda que o principal desafio é a comunicação. “Podemos usar o Teams, os chats, mas não é mesma coisa, [a comunicação] não é tão rápida, tão fluída, sobretudo de ideias de mercado, de tendências”.

“Quando o mercado está a inverter é difícil estarmos tão sincronizados como estamos numa sala de mercados, na qual se entende por expressões vocais, mais alto, mais baixo, por gestos, portanto isto acaba por ser menos intenso e interativo”, adianta.

Os dois gestores, tal como os outros seis que falaram com o Jornal Económico, dizem que, apesar desse aspeto, o processo está a ser bem sucedido.

Paulo Cruz explica que o BCP começou a pensar no assunto logo que surgiram os primeiros sinais, de forma a reagir para salvaguardar a saúde dos membros da equipa, mas também a segurança da operação. Das 15 pessoas da equipa, duas ou três continuam a trabalhar na sede, pois há situações técnicas, por exemplo a necessidade de reboot equipamento, que o requerem.

A maioria das equipas estão a funcionar dessa forma, com algumas operações a rodarem as equipas nas instalações para minimizar o risco.

Carlos Almeida, diretor de investimentos do Banco Best, diz que numa equipa de 15, tem cinco pessoas a trabalhar nas instalações do banco, com rotatividade a cada 15 dias.

Numa escala diferente, Ricardo Evangelista da ActivTrades em Londres, diz que 90% de uma equipa de 220 pessoas, espalhada por cinco cidades em dois continentes, estão a trabalhar de casa, “deixando as idas ao escritório apenas para pessoal-chave da informática”.

Os gestores elogiam todas as equipas de TI. “Todas as novas ferramentas estão a funcionar, graças ao incansável esforço das equipas de TI, que resolveram tudo num curto espaço de tempo,” diz António Pedro Fonseca, head of sales do Banco Invest.

Além dos sistemas internos, todos falam dos sistemas telefónicos que tiveram de ser adaptados para redirecionar as chamadas, nos terminais da Bloomberg, no Skype, no Teams, no Zoom. São estas ferramentas que permitem aos gestores tentar minimizar a ausência do ambiente das salas.

Tiago Cardoso, que dirige a equipa da corretora da britânica Infinox na Ibéria, faz diariamente duas teleconferências com a equipa de 11 pessoas. Sublinha que a perda de rapidez face à presença física até traz algumas vantagens. “As decisões não são tomadas tão em cima do joelho, implicam mais escrutínio e um segundo pensamento sobre a decisão que se ia tomar, o que é bom”.

“Volatilidade psicológica”
Paulo Cruz, do Millennium, frisa que o teletrabalho obriga a um esforço redobrado, “porque basta haver uma falha de comunicação entre a equipa ou não se aperceberem de alguma dinâmica que aconteceu e falhamos ao cliente, e isso não pode acontecer”.

As horas extras não são apenas fruto do processo de adaptação e de novas exigências na comunicação. Os gestores são consensuais – a nova situação criou mais interesse nos mercados financeiros, com aumento de clientes e de volumes transacionados.

“Como as pessoas estão mais tempo em casa, começam a olhar mais para os mercados de capitais e muitas delas, que estavam foram do mercado, começam a investir”, diz Pedro Lino, presidente da DiF Broker. “Por incrível que pareça, essas pessoas acreditam que pode ser uma boa oportunidade e que estas correções a médio prazo são interessantes, e outras que já estavam estão a investir mais”.

“Até esta volatilidade psicológica dos clientes, que um dia querem vender porque estão com receio e noutro querem comprar com a recuperação, é uma coisa nova, porque os mercados não variavam tanto e as pessoas não tinham tanto esta perceção de variação”, adianta.

O aumento da volatilidade acaba também por estimular a motivação e o interesse dos corretores e traders. “Para quem gosta de mercados, isto é interessante”, refere Miguel Gomes Silva, head of treasury and trading, do Montepio. “Um mercado a subir ou a descer 1% não tem muita piada, portanto isto é desafiante e obriga a usar a massa cinzenta”.

António Pedro Fonseca, do Banco Invest, concorda que os corretores gostam da volatilidade. E os clientes?“Os nossos são uns vacinados, já têm uns anos disto, já passaram por 1987, 1998, 2001, 2008”.

“Nós os corretores antigos já estávamos à esperam disso. Não a pandemia, isso só os mais loucos é que poderiam imaginar, mas sim que os mercados tinham que ter uma desculpa qualquer para caírem”, realça.

Naturalmente nem todos os clientes reagem com calma às perdas, no que foi o período de quedas mais rápidas de sempre em Wall Street.

“O grande desafio tem sido lidar com o stresse de clientes”, admite Ricardo Evangelista, da ActivTrades. “Na minha função lido com clientes high net worth, contas grandes, e o desafio tem sido gerir o stresse porque os mercados estão muito complicados. Houve pessoas que beneficiaram, mas a maioria sofreu o choque de perdas importantes”.

Miguel Gomes da Silva, do Montepio, diz que “para os clientes foi dramático, claro, e as perdas fazem parte, mas o importante é conseguir estancar”.

Pós-Covid?
Carlos Almeida explica que o Banco Best tentou manter os clientes informados sobre os movimentos dos mercados através de documentos numa área específica do site e via newsletters. “Quisemos demonstrar também que não é nesta altura que se faz grandes alterações nas carteiras”.

“Isso foi nos clientes normais. Nos outros, mais exigentes, a estratégia é de mostrar disponibilidade e apelar à serenidade, para tentar separar aqui para os clientes o que é relevante daquilo que não é”, acrescenta.

António Pedro Fonseca, do Banco Invest, explica que a experiência de outras crises deixou uma lição principal: não alavancar, seja em que altura for, para evitar perigo.

“Depois chega uma altura como esta e está tudo tão barato e a carteira é executada. Ou mete mais fichas, ou acabou o jogo, mas isto não se trata de um jogo, trata-se de um investimento”, alerta.

Ainda é difícil projetar quando a pandemia irá acabar ou quando os trabalhadores dos mercados poderão voltar ao ambiente mais agitado das salas. A repentina e acelerada transição para um modelo de trabalho remoto vai, no entanto, influenciar o futuro.

“Isto é movimento irreversível. Vai haver muito mais abertura para as pessoas trabalharem um ou dois dias por semana a partir de casa”, diz Steven Santos, do BiG.

Para Pedro Lino, da DiF, provavelmente “se não fosse este desafio não iríamos nunca enveredar pela nova fase que vai acontecer na sociedade que é o trabalho à distância”.

Tiago Cardoso, da Infinox, acredita que, “se calhar, vamos todos chegar à conclusão que não são precisos escritórios de 50 mil euros por mês e ter as pessoas a trabalhar à distância, pois já estão confortáveis com isso”.

“Não vai ser toda a gente, mas pode ser em rotação. Há um mundo antes e outro depois da Covid-19”, conclui.

Artigo publicado no Jornal Económico de 03-04-2020. Para ler a edição completa, aceda aqui ao JE Leitor

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