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Moçambique: Depois da tempestade há que cuidar dos vivos

Devastação provocada pelo ciclone Idai no país lusófono está a mobilizar uma onda de solidariedade que se estende a empresas, autarquias e clubes de futebol. No terreno, a ajuda humanitária inclina-se para uma nova fase: a da reconstrução de infraestruturas e da assistência médica às vítimas.O Governo de Portugal quer estar na linha da frente e promete ajuda“sem prazo” ao povo moçambicano.
14 Abril 2019, 17h00

A passagem do ciclone Idai pelo sudeste de África deixou um rasto de destruição, cujos prejuízos estão ainda por calcular. O número de vítimas mortais está a ser permanentemente atualizado e cada minuto conta para salvar aqueles que continuam desaparecidos. Nos quatro cantos do mundo, têm sido promovidas ações de ajuda humanitária, que pode chegar sob a forma de dinheiro ou através da entrega de bens e mantimentos às populações afetadas. Portugal foi um dos países que se aliou à causa, com o Governo a comprometer-se a estar “na linha da frente do apoio internacional” a Moçambique e as empresas, organizações e sociedade civil a mobilizarem-se para a minimização dos efeitos daquela que foi considerada “a pior tempestade de sempre no Hemisfério Sul”.

A cidade da Beira, no centro litoral de Moçambique, foi uma das mais afetadas pelo ciclone Idai e foi para lá que o secretário de Estado da Proteção Civil, José Artur Neves, se dirigiu após ter sido anunciada a ajuda do Estado português ao país. Diante da comunidade de 2.500 portugueses que reside na cidade, o governante assegurou que a ajuda de Portugal “não tem prazo” e “enquanto as autoridades locais necessitarem do Governo português, a disponibilidade é total, inclusivamente para haver reforço” dos meios humanos e materiais enviados.

Para Moçambique, o Executivo de António Costa enviou até agora quatro aviões com comida, medicamentos e ajuda para resgatar as vítimas do ciclone Idai. O primeiro avião aterrou na sexta-feira, dia 22, transportando a bordo uma equipa de 25 fuzileiros especializados em reação rápida, que já tinham estado numa missão anterior no país. A equipa, composta por dez membros do Exército, três da Força Aérea e dois da GNR tem como missão participar nas operações de busca e salvamento das vítimas do ciclone Idai em zonas de difícil acesso. A equipa foi depois reforçada com operacionais da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), da Força Especial de Bombeiros, da Guarda Nacional Republicana (GIPS e binómios de busca e socorro), do INEM e da elétrica EDP. O Governo português enviou ainda para o país uma equipa de emergência do Instituto de Medicina Legal e uma unidade de emergência de proteção e socorro da GNR.

O ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, acredita que as Forças Armadas devem cumprir a sua missão dentro de “uma semana, dez dias”, cabendo depois às associações humanitárias e à ANPC continuar a apoiar os trabalhos de reconstrução das zonas afetadas de Moçambique. “Continuará a ser necessário dar apoio aos moçambicanos. É um país irmão que nos diz muito e, portanto, este apoio vai continuar nas próximas semanas”, afirmou Cravinho, em conferência de imprensa, após esta quarta-feira ter sido enviado um avião da Força Aérea espanhola de Lisboa, com material de apoio às Forças Armadas portuguesas e ajuda humanitária, para a cidade da Beira. O governante acredita que agora é hora de passar à segunda fase das operações que visa, especialmente, “a saúde pública e a reconstrução”.

A chuva e ventos fortes provocados pela passagem do ciclone Idai na noite de dia 21 inundaram uma área equivalente a mais de 122 mil campos de futebol no centro de Moçambique. Até ao momento, foram contabilizados mais de 450 mortos e 1.500 feridos, mas as autoridades alertam que o número pode vir a aumentar. A prioridade, depois das inundações, é evitar a propagação de doenças, como a cólera e a malária, mas a falta de condições sanitárias, agravada pela  tempestade, dificultam a missão. No terreno, estão a ser instalados centros de tratamento e as equipas médicas estão a ser distribuídas pelo território afetado.

Ajuda das organizações

A Assistência Médica Internacional (AMI) foi uma das organizações não-governamentais que se dirigiu de imediato para Moçambique, com uma equipa de médicos, enfermeiros, pessoal logístico e gestores de projeto que fazem parte da missão de ajuda humanitária.  A missão, que pode durar entre um e três meses, tem em vista responder às necessidades alimentares e prestar o apoio médico necessário às populações afetadas. Numa primeira fase, a AMI dá conta de que foram comprados bens alimentares essenciais, como arroz, farinha de milho, sal, água, assim como medicamentos e material de apoio médico, em Moçambique, para apoiar o comércio local. Ao Jornal Económico, fonte da AMI diz que a organização tem, neste momento, uma equipa de 26 elementos na Beira e deve assumir “a prestação de assistência médica e medicamentosa no Centro de Saúde de Nhanconjo”.

A Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) vai também enviar no próximo domingo, dia 31, um segundo avião para Moçambique com 33 toneladas de material médico, sobretudo apoio maternoinfantil. A componente “inédita” destina-se a recém-nascidos e às mães, tendo em conta que, após a tempestade que abalou Moçambique, têm surgido vários casos de partos permaturos, devido ao stress pós-traumático. Entre os bens doados estão fraldas, alimentos, e roupas para recém-nascidos. O segundo envio de material médico da CVP vai ser patrocinado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e pela Jerónimo Martins. A EuroAtlantic, proprietária do avião, vai voar diretamente para a Beira e vai cobrar apenas o custo da operação, abdicando do lucro.

Para prestar apoio técnico a Moçambique, a Ordem dos Engenheiros propôs ao Governo a criação de uma bolsa de voluntariado para reconstruir as habitações e infraestruturas básicas que foram destruídas pela passagem do ciclone Idai. A Ordem considera que é necessário um suporte logístico ao país-irmão e sublinha que existe “uma grave carência de engenheiros em todas as especialidades”. As autoridades moçambicanas dão conta de que mais de 90 mil habitações foram atingidas pelo ciclone Idai e mais de 127 mil pessoas tiveram de ser transferidas para centros de acolhimento. Cerca de 50 mil casas ficaram totalmente destruídas, e mais de 3.200 salas de aulas ficaram danificadas ou destruídas, bem como 52 unidades de saúde. “Temos a perfeita noção do grau de destruição e do grande esforço que vai ser necessário desenvolver a curto prazo para a sua reabilitação”, explica a Ordem dos Engenheiros, num comunicado enviado às redações.

Empresas põem mãos à obra

A par com as iniciativas governamentais e não-governamentais, várias empresas portuguesas têm-se mobilizado para ajudar as vítimas do ciclone em Moçambique. Exemplo disso é a iniciativa dos CTT que, em articulação com os Correios de Moçambique, lançaram uma campanha de recolha de roupa para enviar, de forma gratuita, para as populações afetadas. O objetivo da campanha foi cumprido em menos 24 horas, o que os CTT consideraram “um sucesso estrondoso”. “Nos próximos dias, devem chegar a Moçambique 200 mil embalagens solidárias. Nessas embalagens constam 1,6 toneladas de roupa leve que vai ser enviada de avião para Moçambique, assim como vários contributos dos portugueses. A parte menos urgente dos artigos doados será depois expedida por barco”, afirmou ao Jornal Económico fonte oficial do serviço postal.

A Galp foi outra das empresas que se juntou à onda de solidariedade entre as empresas portuguesas. Em parceria com a Cruz Vermelha, a Fundação Galp vai doar bens de emergência no valor de 150 mil euros para apoiar as operações de socorro às vítimas em Moçambique, sobretudo na província de Sofala, da qual a Beira é capital. A petrolífera, que tem negócios em Moçambique há mais de 60 anos, diz estar ainda “consciente” de que a disponibilidade de combustível “é fundamental para as operações de socorro e de reconstrução”, pelo que está “concentrada em assegurar a normalidade das operações nos seus postos de abastecimento nas zonas afetadas pelo ciclone Idai”.

A construtora Mota-Engil está também a  apoiar o Governo moçambicano com um milhão de dólares (cerca de 900 mil euros) destinados a obras de recuperação de estradas e pontes, que foram parcialmente destruídas pelo ciclone. Uma vez que a Mota-Engil tem estaleiros em Mocuba, na província da Zambézia, foi para essa região que deslocou meios humanos e o equipamento necessário para a recuperação das vias terrestres. A empresa liderada por Gonçalo Moura Martins disponibilizou-se também para, juntamente com a Fundação Manuel António da Mota, enviar produtos alimentares e outros bens de primeira necessidade para o país africano.

No setor da banca, a Caixa Geral de Depósitos (CGD), a Fidelidade e o BCP anunciaram que se vão associar à Cruz Vermelha Portuguesa e à UNICEF Portugal no apoio às vítimas do ciclone Idai. “Moçambique e Portugal são países irmãos, com múltiplas parcerias empresariais e com extensa cooperação institucional, no qual muitos portugueses têm raízes, pelo que um acontecimento destas dimensões não nos pode deixar indiferentes”, lê-se no comunicado conjunto destas entidades. Em conjunto, deram um contributo inicial de 150 mil euros e apelam à contribuição dos portugueses para a angariação de fundos de apoio às vítimas, através de duas contas bancárias solidárias que foram criadas para o efeito.

Na mesma linha, a Santa Casa da Misericórdia vai dar 500 mil euros a Moçambique, estando ainda “a trabalhar com a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas e com a Embaixada de Portugal em Maputo a melhor forma de efetivar essa ajuda financeira”. A Cáritas Portuguesa vai também enviar 25 mil euros para Moçambique e já mostrou disponibilidade para mais apoios. Também a Fundação Calouste Gulbenkian expressou “solidariedade com as populações atingidas” e disponibilizou-se para participar nas primeiras ações de socorro humanitário, com a doação de 100 mil euros, “especificamente vocacionados para a aquisição de medicamentos e outros consumíveis na área dos cuidados de saúde”.

Entre os clubes desportivos, a solidariedade para com o povo moçambicano foi também notória. O Benfica tem em marcha uma campanha de recolha de alimentos enlatados para serem enviados para Moçambique, que decorre até este dia 31. Já o Sporting vai promover, no dia 3 de abril, uma recolha de alimentos para as vítimas do ciclone Idai, no dérbi com o Benfica para a Taça de Portugal, na próxima quarta-feira. Já neste sábado, às 17h00, as equipas de futebol feminino dos dois “grandes”_de Lisboa irão disputar um jogo no_Estádio do_Restelo cuja receita de bilheteira reverte para Moçambique. E o Sporting de Braga vai doar 10% da receita dos jogos com o FC Porto e com o Benfica.

Autarquias aliam-se à causa

Ao nível local têm sido também várias as autarquias a juntarem-se ao esforço de resposta à catástrofe. A Câmara de Lisboa comunicou que vai conceder 150 mil euros, bem como o envio de equipas multidisciplinares de técnicos para apoio a necessidades básicas no terreno. A maior autarquia do país apelou ainda à solidariedade dos lisboetas, colocando pontos de recolha de donativos em vários pontos da cidade (D. Carlos I, Martim Moniz, Graça, Defensores de Chaves, Santo Amaro, Monsanto, Alvalade, Benfica, Marvila, Encarnação e Alta de Lisboa). A autarquia lembra que os bens mais solicitados pelo povo moçambicano são “medicamentos, especialmente para infeções gastrointestinais e analgésicos,  produtos alimentares enlatados com período de validade prolongado, produtos para o tratamento de água e produtos de higiene pessoal e limpeza de instalações”.

Também o executivo municipal do Porto aprovou a entrega de 100 mil euros para a reconstrução do Hospital da Beira, 10 mil euros para a Escola Portuguesa na cidade e ainda o envio de equipas multidisciplinares. O autarca portuense, Rui Moreira, manifestou ainda a vontade de continuar a apoiar a região “depois da calamidade”, tornando o município patrono de “uma infraestrutura, eventualmente um centro de saúde ou uma escola”. A Câmara de Coimbra disponibilizou-se também para recolher bens alimentares e de primeira necessidade para o povo de Moçambique, em particular da Beira que é cidade irmã de Coimbra. A recolha decorre na Casa Municipal da Proteção Civil.

Já a Câmara de Sintra vai doar 120 mil euros e prestar apoio logístico à cidade da Beira, enquanto a autarquia de Cascais vai disponibilizar 150 mil euros de apoio de emergência. O munícipio do Seixal anunciou um apoio financeiro de 12 mil euros às entidades a operar no terreno, como é o caso da Cruz Vermelha e da AMI. Além disso, o Seixal está a promover uma campanha de recolha de alimentos e medicamentos, bem como um concerto solidário, que acontece este sábado, dia 30, e cujas verbas arrecadadas serão reencaminhadas para Moçambique. Das ilhas, chega também o anúncio de que o Funchal se associou à campanha de angariação de bens essenciais denominada “A Caminho de Moçambique”, com o objetivo de recolher alimentos secos, medicamentos e produtos de limpeza.

Perdão da dívida?

O rasto de destruição provocado pela passagem do ciclone Idai pelo sudeste da África não deixou a comunidade internacional indiferente. Além de Moçambique, também o Zimbabué e Malawi foram atingidos pela tempestade, tendo este três países registado, em conjunto, mais de 780 mortos. A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que cerca de 2,9 milhões de pessoas tenham sido afetadas e a organização, pela voz do secretário-geral António Guterres, apelou a uma resposta internacional rápida ao pedido urgente lançado no início da semana para financiar a ajuda de emergência em Moçambique, por um período de três meses, com 282 milhões de dólares (quase 250 milhões de euros), tendo em conta “a devastação causada e o impacto enorme na própria economia do país”, cujo crescimento abrandou para 3,1% no último semestre de 2018.

Em resposta ao apelo, países como os Estados Unidos, Canadá, Brasil, França, Alemanha, Japão e Marrocos anunciaram apoio financeiro e logístico a Moçambique. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) expressou também “profunda consternação pela catástrofe natural” e decidiu criar um Fundo de Solidariedade para apoiar as regiões atingidas. Os Estados-membros da CPLP ponderam ainda a criação de um mecanismo para intervenção coordenada em situação de emergência humanitária por catástrofe.

Apesar da ajuda massiva que tem chegado a Moçambique, há quem considere que peca por ser tardia. No início da década, os economistas previam que o país se tornasse um dos pesos pesados do continente africano, com elevadas taxas de crescimento, mas a “maldição dos recursos naturais” acabou por conduzir a um desfecho diferente. Na expectativa de obter um crescimento económico fácil, o governo de Armando Guebuza contraiu secretamente divídas junto de três empresas públicas que lesaram o Estado em mais de dois mil milhões de dólares (aproximadamente 1,8 mil milhões de euros).

O Fundo Monetário Internacinal (FMI) fez saber que está disponível para atribuir um financiamento de emergência de entre 60 a 120 milhões de dólares, através do mecanismo criado pela organização para atender situações de emergência nos Estados-membros. O FMI considera que a inflação de Moçambique deverá ser o principal indicador macroeconómico afetado pela tempestade, mas esclarece que a ajuda de emergência não significa que o programa de assistência financeira, suspenso em 2015 na sequência da descoberta de dívidas ocultas no país, seja retomado.

Artigo publicado na edição nº 1982 de 29 de março do Jornal Económico

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