Nas circunstâncias que vivemos, a poucos dias de festejarmos o 50º aniversário do 25 de Abril, a nossa consciência impõe-nos uma homenagem sem limites nem dúvidas ao 25 de Abril, àqueles que contribuíram para que tivesse existido e aos que o concretizaram. Sem ele nada do que construímos teria sido possível e a cidadania e a liberdade não se poderiam afirmar.

Meio século depois já é possível, com frieza, distanciamento e racionalidade dizer que só a liberdade e o regime democrático que o 25 de Abril nos trouxeram permitiu ter este Portugal diferente, melhor e mais desenvolvido em que hoje vivemos.

Sei, sabemos todos, que, a espaços, sempre ressurge um certo discurso que, tomando partes da realidade pelo todo, procura diminuir o que Portugal e os Portugueses – todos – construíram nos últimos cinquenta anos.

Para além do que a memória de cada um de nós retém de um tempo de trevas, de fugas e de morte, há uma memória colectiva que não permite equívocos nem falsidades.

Sabemos todos:

  • Que em 1974, 27,5% da população era analfabeta e que hoje só o será cerca de 3%;
  • Que em 1974, Portugal teria cerca de 70 000 jovens matriculados no Ensino Superior e que hoje terá 450 000;
  • Que aos 30% da população que em 1974 trabalhava nos campos, em muitas circunstâncias quase “servos da gleba” dos tempos modernos, se contrapõem os 3% da actualidade;
  • Que em 1974, as mulheres representavam 25% da população activa e hoje representam 50%;
  • Que a população portuguesa aumentou mais de 20%, está mais velha e mais saudável;
  • Que em 1974 tínhamos uma esperança de vida de 78 anos e hoje a esperança de vida é de 85 anos;
  • Que em 1974 o país tinha três milhões de casas e hoje tem seis milhões, sendo que daquelas 3% eram segunda habitação e destas o são 19%;
  • Que em 1974 não existia salário mínimo nacional e, quando foi criado, correspondia, a preços constantes, a 80% do salário mínimo actual.

E que valor incomensurável tem o poder escrever o que estou a escrever e só ter que disso prestar contas à minha consciência? Porém, a pior perversão é cair no autocontentamento, sempre estéril e paralisador.

Afirmar hoje a cidadania é participar, é ter consciência do muito que há para fazer, que os problemas existem e temos sempre de ser nós a encontrar um caminho e uma solução. Olhar para o futuro e perguntar-me como posso contribuir para que o futuro de todos nós possa ser diferente e melhor.

Já aqui dissemos que o que mais importa é sempre o que está para vir. Sabemos como era Portugal e o mundo antes de Abril de 1974. Sabemos como eram há 50 anos. Sabemos o que mudou nestas cinco décadas. E se não sabemos como vai ser, sabemos, pelo menos, o que nos preocupa e que sociedade ambicionamos.

É esse exercício de cidadania que cada um de nós, a seu modo, é desafiado a fazer.

O percurso de séculos de construção do Estado de Direito Democrático e do primado da Lei é hoje posto em crise, em múltiplas zonas do globo, com retrocessos vários da vida em liberdade e com graves e irreparáveis prejuízos para a dignidade da pessoa humana.

Estranhamente as desigualdades ampliam-se, as expectativas de ascensão socioeconómica parecem gorar-se, e a ambição de uma sociedade mais equitativa e mais fraterna parece esfumar-se na marcha do tempo.

Os desequilíbrios demográficos, os movimentos migratórios à escala global, a incapacidade de distribuir a população pelos diversos territórios, estão a conduzir-nos a realidades novas que verdadeiramente não sabemos tratar, nem estamos a tratar.

Vivemos num quadro de sucessivos factores de incerteza. Das crises humanitárias sem precedentes, dos mares que se transformam em cemitérios de pessoas, de esperanças e de valores.

A esperanças passageiras de mais liberdade sucedem-se Invernos duradouros e rigorosos para os Direitos Humanos.

Estes são tempos de ousar porque esta é a oportunidade de uma geração, daqueles que estão agora a entrar no mercado de trabalho, ou no início das suas carreiras. É deles o momento de construir um novo modelo de sociedade em que todos possam ter acesso à dignidade que hoje é tantas vezes negada, ou, pior, camuflada.

Estes são tempos de ousar porque se impõe construir um novo modelo de equilíbrio territorial que não deixe ninguém, nenhuma região, para trás.

Estes são tempos de ousar porque temos de reconstruir o modelo democrático em que nos acomodámos e que, porventura, não considera nem enquadra as novas realidades que as dinâmicas sociais foram criando.

Estes são tempos de ousar porque é necessário encontrar novas formas de organização internacional, capazes de “governar” o mundo policêntrico em que vivemos sem fazer “vista grossa” às ditaduras.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.