É uma da tarde, está um sol inclemente, os termómetros acusam 30 graus centígrados, indiferentes ao calendário, que nos indica estarmos a 24 de outubro, ironicamente a poucos dias da mudança para o horário de Inverno. Estamos no Alto Alentejo a suar as estopinhas, algures na divisória entre os concelhos de Sousel e de Estremoz. A planície, um pouco desolada, domina-nos. A terra está seca, a água escasseia, mas a sementeira de trigo já está feita, esperando-se que daqui a sete ou oito meses, em junho do próximo ano, se possa fazer a devida e recompensadora colheita.
Mas estamos a falar de um trigo especial porque é aqui que começa a história de um dos mais conhecidos alimentos para bebés em Portugal nas últimas décadas, o famoso Nestum, produzido pela Nestlé Portugal, subsidiária da conhecida multinacional suíça. Estamos na Herdade das Romeiras, detidas por uma sociedade anónima, a Sociedade Agrícola do Ameixial. Estamos numa exploração agrícola com cerca de dois mil hectares de extensão, dos quais 450 hectares para culturas de regadio. Destes, cerca de 100 hectares são dedicados ao cultivo de cereais, milho, trigo e outros cereais.
O que nos traz aqui é o trigo, um trigo especial, adaptado às restritivas exigências comunitárias em termos de alimentação para crianças e bébés, ou como se diz no setor, baby food, ou, mais simplesmente, BF. Henrique Chia, diretor técnico da Herdade das Romeiras explica que a exploração produz entre 500 e mil toneladas de trigo por ano, consoante há menos ou mais água. Toda a produção de trigo desta herdade vai para a CERSUL, uma sociedade anónima que representa um conjunto de agricultores, produtores de cereais, com maior implantação geográfica na região do Alto Alentejo.
Garantir rastreabilidade total da sementeira ao transporte
“Temos de garantir a rastreabilidade total, o controlo do que se faz no campo, nas colheitas. Chega ao ponto de não podermos semear trigo para BF em terrenos que na campanha anterior foram utilizados para cultivar tomate ou pimento, porque isso pode trazer contaminantes que são proibidos neste tipo de cereais e de produtos alimentares para bebés e crianças”, explica este responsável.
Henrique Chia adianta que “a fertilização é feita com base na análise dos nossos solos”. “Temos de ter um controlo máximo de herbicidas e pesticidas, insecticidas e fungicidas, que são proibidos por normas comunitárias, em que apenas se admitem excepções quando aparece uma praga especialmente devastadora”, garante Henrique Chia.
O controlo absoluto, mais que uma obsessão nesta história da produção do Nestum, como vamos ver noutros pontos da cadeia de produção, é um salvo-conduto para garantir receitas de um cliente tão poderoso e prestigiado como a Nestlé. “Temos de ter um controlo absoluto do princípio ao fim, incluindo nos transportes. Temos camiões que só transportam cereais BF para não haver contaminações e que são rastreados permanentemente de forma a podermos dizer em qualquer momento qual foi a carga que transportou anteriormente”, explica o diretor técnico da Herdade das Romeiras.
Henrique Chia adianta que “temos um registo permanente de toda a rastreabilidade do cereal até chegar ao agricultor e o registo de todos esses processos para evitar contaminações cruzadas”. “Tentamos não ter surpresas porque isso traz-nos custos associados. O processo pode parecer complicado, mas esta exploração tem a experiência de fazer produção integrada desde há vários anos. Foi só preciso adaptar uma rotina que já tínhamos para essas exigências mais restritas”.
Enquanto nos fala no terreno já semeado com o trigo que há de ajudar a encher as caixas de Nestum que vão chegar ao mercado nacional na segunda metade de 2018, Henrique Chia deteta e arranca do solo mais uma ameaça, uma praga que os populares apelidam de ‘figueira do Inferno’, um tropano alcalóide que entrou recentemente na lista de perigosos contaminantes que não podem entrar em contacto com os cereais selecionados para BF. A agricultura é uma profissão de risco e o perigo está sempre à espreita…
Mas Henrique Chia está confiante: “temos a experiência de fazer agricultura de conservação, semeamos sem lavrar, com novas técnicas e equipamentos e aproveitando matéria orgânica para proteção e evitar a erosão dos terrenos”.
CERSUL apostou em mais profissionalismo e qualidade para garantir o cliente Nestlé
Seguindo o percurso do Nestum desde a sementeira do cereal até à mesa na casa dos portugueses, deixamos a Herdade das Romeiras e andamos cerca de três dezenas de quilómetros mais em direção à fronteira, rumo a Elvas, mais precisamente em Santa Eulália. É aqui que está instalada a CERSUL – Agrupamento de Produtores de Cereais do Sul, uma sociedade anónima existente desde 1990.
João Guerra, director-geral da CERSUL, recebe-nos no seu escritório, de onde é bem visível todo o silo de cereais, o mais importante deste agrupamento de produtores, inaugurado em 1994, com tecnologia francesa.
“Há um acordo entre a CERSUL e Germen, uma empresa de moagem de cereais, em que funcionamos como fornecedor de matérias-primas da Germen, que, por sua vez é o fornecedor do cereal para a Nestlé fazer o Nestum e outros alimentos”, esclarece João Guerra.
O diretor geral da CERSUL acrescenta que, “com este acordo, apostámos em mais profissionalismo e mais qualidade”, revelando que “95% do cereal que a Germen fornece à Nestlé é proveniente da CERSUL”. João Guerra adianta que entre 7% e 8% da produção deste agrupamento de produtores cerealíferos é destinada à Germen.
“Estamos a falar de um produto muito específico, que são cereais do tipo BTP (baixo teor de pesticida) e BF (baby food), que ainda tem requisitos mais apertados para poderem ser adquiridos pela Nestlé para comercializar produtos alimentares para bebés e crianças. Por isso, controlamos todos os teores de contaminantes e de fertilizantes”, assevera o diretor geral da CERSUL.
Mas João Guerra, que lidera esta sociedade anónima com 175 produtores, a maioria deles localizados no Alto Alentejo, numa área cultivável entre 50 e 60 mil hectares, não tem medo do desafio, assumindo que “o nosso objetivo é tentarmos produzir em Portugal todos os cereais de que a Nestlé necessita e sabemos que isso implica responder a um elevado nível de exigências”.
Além de fazer o acompanhamento do agricultor desde o primeiro momento, a CERSUL funciona ainda como uma central de compras para os agricultores associados, disponibilizando ainda todos os serviços de laboratório, com dois técnicos especializados, e de secagem e de armazenagem do diversos cereais. Aqui já não só o trigo, mas também a aveia e o arroz, por exemplo. A produção de cereais da CERSUL no âmbito deste acordo tem oscilado entre 38 mil e 40 mil toneladas por ano, mas a sua capacidade de armazenagem ascende a cerca de 50 mil toneladas.
Apesar de estarmos a menos de uma centena de metros de uma linha ferroviária, toda a distribuição de cereal que sai da CERSUL em Santa Eulália é expedida por camião, sobrecarregando o ambiente. A linha ferroviária está praticamente desativada e assim há poucas hipóteses de a bela estação de comboios conseguir inverter o adiantado estado de degradação em que já se encontra.
Parceria da Germen com a Nestlé vai estender a alimentos biológicos
Sendo assim, fazemo-nos à estrada e dirigimo-nos para a próxima etapa desta a Volta ao Nestum por Portugal, a Germen, empresa familiar dedicada à moagem de cereais. Entre Elvas e Matosinhos, onde a Germen está sediada, são mais de 350 quilómetros de distância, mas a preocupação é a mesma.
“A Germen tem três linhas de produção, de trigo, com capacidade para transformação de 380 toneladas por dia, temos uma segunda linha de produção de centeio, que é dedicada à produção de baby food para a Nestlé, que tem de respeitar as prescrições de baixo teor de contaminantes (pesticidas e metais pesados), com uma capacidade de cerca de 60 toneladas por dia. A terceira linha de produção é a de arroz, para farinha, sem glúten, com uma capacidade de cerca de 35 toneladas por dia!”, explica-nos Luís Matos Ramos, administrador desta empresa.
A Germen é uma empresa familiar que resultou da fusão entre três empresas do setor, a Sociedade de Fomento Industrial, com sede no Porto, a Companhia Aveirense de Moagens, com sede em Aveiro, e a Sociedade Industrial de Vila Franca de Xira. Em janeiro de 1991, ocorreu essa fusão e, a partir daí, a empresa iniciou a sua atividade.
“Decidimos unir esforços. Decidimos fazer uma empresa única. Ao fazermos esta concentração, centrámos o centro de produção na Senhora da Hora, em Matosinhos, a linha de produção de centeio passou de Aveiro para o Porto, assim como a linha de produção de arroz de Vila Franca de Xira para o Porto. Empregamos neste momento cerca de 70 funcionários”, garante este responsável.
A Germen teve um volume de negócios de cerca de 35 milhões de euros em 2016, um valor que se deve manter em 2017. “Temos tido na Nestlé um grande parceiro. Fugimos das farinhas convencionais. A nossa aposta em produtos sem glúten vai nessa linha. Apostamos mais em nichos de mercado menos massificados, sabendo que há empresas do setor com maior capacidade de produção. Há uma farinha convencional que se usa no Nestum e em outras marcas conhecidas da Nestlé, como a Chocapic e Estrelitas, que são cereais de pequeno-almoço e mesmo de almoço, mas também na baby food, mais para a Cérélac”, observa Luís Matos Ramos, que coloca a tónica num aspecto que já ouvimos e que é recorrente ao longo do processo de produção do Nestum: “temos limites muito restritos impostos pela União Europeia, como requisitos ao nível de um máximo de 10 PPB (10 miligramas de partes por bilião de contaminantes por tonelada)”.
“Desde que recolhemos os cereais, fazemos um acompanhamento permanente. Calibramos, selecionamos o cereal em grão. Também vendemos para a Nestlé outros cereais, como a cevada e cevada para bebidas solúveis, como a Pensal, Mokambo e Brasa, além de farinhas integrais. Esta é uma ligação com mais de três décadas. Dependemos em grande parte da Nestlé. Temos tido uma procura estável, ligeiramente crescente, por parte da fábrica da Nestlé em Avanca (Aveiro), onde, entre outras coisas, se produz o Nestum”, adianta o administrador da Germen. Luís Matos Ramos confidencia que, neste momento, a Nestlé vale entre 5% e 10% da atividade, em termos de vendas, sendo o maior cliente da empresa em Portugal.
“Esta parceria com a Nestlé é fundamental. A Nestlé é mutíssimo importante e com a qual temos aprendido um padrão de bastante exigência, com certificação. Foi por aí que avançámos para as nossas próprias certificações e por elevar os nossos standards de qualidade. Temos tentado aproveitar muita coisa desta parceria, para continuar a melhorar os nossos processos de produção e de transformação e, no final, toda a nossa qualidade de produto. Temos tentado tirar o máximo partido do know-how da Nestlé”, refere o administrador da Germen.
O último exemplo é um investimento de cerca de 125 mil euros que a Germen está a fazer num equipamento que irá fazer a limpeza e separação do cereal segundo os últimos requisitos a nível mundial, uma vez que apesar de todos os cuidados já verificados desde a sementeira até aqui, o trigo e o centeio, antes de serem moídos, têm de ser limpos. “Estamos a falar de uma máquina que faz a seleção óptica do cereal. Tudo o que não é cereal é rejeitado por ar comprimido. Em princípio, no princípio de novembro já estará a funcionar. Foi uma imposição da Nestlé, porque estava a aparecer uma semente de cereal, muito semelhante ao trigo, mas que é contaminante e proibida para a alimentação de baby food”, admitiu Luís Matos Ramos.
A parceria entre a Germen e a Nestlé está a correr tão bem que as duas empresas alargaram o seu âmbito inicial e estão a desenvolver uma nova gama de produtos biológicos, para a marca Cérélac. “Vamos lançar bolachas biológicas para crianças. Vamos fazer produtos biológicas para a Nestlé com base no trigo do Alentejo e no arroz do Ribatejo. São novos produtos que vão de encontro às necessidades dos consumidores e dos clientes. As gamas de produtos baby food e biológicos complementam-se. Queremos especializar-nos nestas áreas”, assegura o administrador da Germen.
A Germen tem uma frota própria de quatro camiões-cisterna para distribuição dos cereais a granel. Daqui até Avanca, nas imediações de Aveiro, onde se localiza a fábrica da Nestlé que produz o Nestum para Portugal – há uma fatia de exportação para Angola – são quase 60 quilómetros.
Fábrica da Nestlé em Avanca produz 6.600 toneladas de Nestum por ano
Estamos quase a chegar ao fim e a ver os famosos flocos a entrarem nas não menos conhecidas embalagens. Na fábrica de Avanca, a Nestlé Portugal emprega cerca de 300 funcionários para produzir, entre outros produtos, cerca de 6.600 toneladas de Nestum por ano. O mais procurado é a variedade de Nestum Clássico Mel, que atinge, em média uma produção anual de cerca de cinco mil toneladas.
A Nestlé orgulha-se de exibir que 83,5% das matérias-primas processadas nesta unidade são de origem nacional, com mais 90% de embalagem igualmente nacional. A fábrica produz Nestum, Chocapic, Nesquick, Estrelitas Mel. Na gama Nestum, esta unidade produz o Nestum Mel, mix de chocolate, o mix de mel e o Nestum Chocolate. Produz também a farinha Pensal, com cacau, as natas para bater Longa Vida, o leite em pó gordo Nido e a farinha láctea Cérelac, entre outros artigos.
Quem nos recebeu foi Nélson Silva, responsável de produção da fábrica, que nos avisa que o fabrico do Nestum tem três etapas, o fabrico de base, o dry mix e o enchimento. “O fabrico de base consiste em receber dois tipos de matérias-primas em granel, farinhas de trigo em sacos e açúcar. Depois há outros ingredientes como farinha de soja, farinha de milho, farinha de arroz, farinha de alfarroba, farinha de aveia ou farinha de trigo integral, por exemplo. Estas matérias recepcionadas passam todas por um íman para reter e retirar qualquer material ferroso e outros elementos como pedras e elementos estranhos, que podem gerar problemas públicos de saúde”, elucida Nélson Silva.
Segundo este responsável, depois, misturam-se vários materiais, com um sistema de doseamento automático, controlado por um autómato consoante a receita vai para um misturador. Numa fase seguinte, vai para um outro misturador.
O primeiro misturador só mistura elementos sólidos, ou seja, acima de tudo, os cereais. O segundo já mistura elementos líquidos, que podem ser mel, enzimas, cacau, corantes. Ocorre a seguir a fase de hidrofilização enzimática dos cereais, onde se processa o desdobramento da farinha de trigo, de cada amido, nos seus elementos constituintes mais básicos, com especial destaque para a glucose e a maltose.
“Isto é necessário porque o organismo humano não assimila cadeia longas de amido. Na prática, a hidrólise é uma quebra das cadeias de hidrogénio. Este processo permite uma maior facilidade da digestão e a redução funcional do açúcar. Também melhora a hidratação da papa, que assim se torna mais macia, mais suave”, explica Nélson Silva.
Depois passa-se a outra fase do processo industrial, designado na gíria como ‘CHE’, em que a água e os enzimas se juntam a uma temperatura adequada. Estas enzimas vão desdobrar a cadeia do amido, como se tratasse de um sistema digestivo.
Na linha de produção do Nestum, passa-se depois por mais um íman “para retirar impurezas porque temos ingredientes líquidos, para estarmos seguros”. “Ocorre depois a pasteurização, que é uma das fases mais importantes, por estar em causa a relevância da segurança alimentar e em que temos de eliminar microorganismos indesejáveis. Numa fase posterior, decorre a secagem”, adianta o responsável de produção da fábrica de Avanca.
Esta fábrica da Nestlé funciona com três secadores industriais da papa que vai dar origem ao Nestum, cada um com quatro metros de comprimento e 1,5 metros de diâmetro. São cilindros impressionantes a rolar à temperatura de 180 graus centígrados, em que essa papa do Nestum é secada, desidratada, sendo depois retirada em folha (tipo língua da sogra) e vai depois para um moinho, “que nos dá a granulometria que pretendemos”. E que dão ao Nestum aquele aspeto que todos conhecemos, em forma de flocos.
Agora, o Nestum está quase pronto para embalar e passa para a fase do dry mix, em que Nélson Silva diz que “adicionamos o que não pode sofrer tratamento térmico”. No caso do Nestum, estamos a falar dos frutos e do mel, para o Nestum Mel. A seguir é a fase de enchimento: em Avanca, há quatro máquinas de encher Rovena. Procede-se ao enchimento de saquetas de 300 gramas (Nestum) e de 350 gramas (Nestum Mel Clássico). Neste caso, são duas saquetas de 350 gramas para uma caixa de 700 gramas. Mesmo aqui, cada saqueta volta a passar por um detetor de metais para rejeitar potenciais corpos estranhos. Os produtos Nestum passam por uma estojadora, que coloca as saquetas dentro da caixa, da embalagem de cartão que chega ao consumidor final. O produto passa novamente por um detector de raios X para ver se ainda há corpos estranhos à espreita. Depois segue-se para a encartonadora, que coloca as embalagens de Nestum dentro de caixas para seguir para a distribuição. E agora, sim, o Nestum já está muito mais de chegar aos pratos da sua família…
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