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“Notas de Inverno sobre Impressões de Verão”

Por insistência dos amigos, Dostoievski descreve as suas impressões dos lugares que visita na Europa, misturando ensaio e ficção, num registo incisivo e acutilante. Eis a sugestão de leitura desta semana da livraria Palavra de Viajante.
  • Marta Teives
14 Março 2020, 10h17

 

 

Entre 1862 e 1863, Fiódor Dostoievski fez várias viagens pela Europa. Tinha 40 anos e nunca saíra da Rússia. A expetativa era tal que não se conseguiu decidir por alguns lugares em particular; queria ir a todo o lado. Assim, em apenas dois meses e meio, esteve em Berlim, Dresden, Wiesbaden, Baden-Baden, Colónia, Paris, Londres, Lucerna, Genebra, Génova, Florença, Milão, Veneza e Viena, entre outras cidades, nalgumas inclusivamente duas vezes.

Por insistência dos amigos, Dostoievski descreve as suas impressões destes lugares, misturando ensaio e ficção, num registo incisivo e acutilante, como se pode depreender do excerto que se segue: “[Em Berlim] Nem das tílias gostei, e, para as manterem, os berlinenses sacrificam tudo o que lhes é mais caro, incluindo talvez até a sua Constituição; e o que é mais caro para um berlinense do que a sua Constituição? E ainda por cima os próprios berlinenses, todos até ao último, pareciam tão alemães, que eu, apesar dos frescos de Kaulbach (oh, horror!), esgueirei-me rapidamente para Dresden, alimentando na alma a profunda convicção de que é preciso habituarmo-nos de modo especial aos alemães e que, sem a habituação, é muitíssimo difícil suportá-los em grandes massas.”

“Notas de Inverno sobre Impressões de Verão”, editado pela Relógio d’Água (com tradução e notas de António Pescada), reúne observações de viagem, esboços e comentários, que no conjunto constituem uma tipologia mais imaginária do que real do ocidente, e onde o leitor encontra a prosa inconfundível de um dos maiores escritores russos, autor de “Crime e Castigo”, “Os Irmãos Karamazov” ou “O Jogador”. Este último, que foi ditado em vinte e seis dias à estenógrafa Anna Grigorievna – que viria a ser a sua segunda mulher e de quem Tolstoi disse que “muitos escritores russos estariam melhor se tivessem uma mulher como a de Dostoievski” (referindo-se à sua dedicação ao marido e à sua obra) –, é o retrato da sua paixão pelo jogo, iniciada precisamente em Wiesbaden.

Em parte, estas viagens eram justificadas pelos seus problemas de saúde, surgidos sobretudo durante o exílio na Sibéria, quando a pena de morte a que fora condenado, em 1849, por pertencer a um grupo progressista que defendia a abolição da servidão na Rússia – denominado Círculo Petrashevski – foi substituída por cinco anos de trabalhos forçados (o indulto surgiu no último momento, quando Dostoievski se preparava para enfrentar o pelotão de fusilamento, uma prática atroz que Nicolau I cultivava com prazer). Daí, as estadias nas estâncias termais de Wiesbaden ou Baden-Baden, mesmo que estas se situassem, e situem ainda, em território alemão, país de gente difícil de suportar, segundo o escritor russo.

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