O enquadramento legal português sobre preços de transferência sofreu mudanças, no final do ano passado, com a publicação de duas portarias que atualizaram os regimes dos acordos prévios sobre preços de transferência e dos preços de transferência nas operações efetuadas entre um sujeito passivo do IRS ou do IRC e qualquer outra entidade. Esta segunda regulamentação era de 2001, a primeira de 2008, e garantiram cerca de duas décadas de estabilidade, mas agora, era necessário adequá-las às orientações seguidas internacionalmente.
“O conteúdo da nova legislação permitiu aproximar as regras portuguesas daquelas que vêm sendo tidas em conta na maior parte das jurisdições pertencentes à esfera da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico), as quais já se encontram refletidas nas correspondentes normativas domésticas”, diz ao Jornal Económico (JE) João Guimarães, Tax Director da consultora EY.
“Neste sentido, pode-se considerar que a nova legislação assegura um mais elevado nível de segurança jurídica aos contribuintes portugueses no que se refere à interpretação das regras aplicáveis às operações vinculadas transfronteiriças e à documentação das suas políticas”, acrescenta.
O processo de globalização da economia tem levado ao surgimento de um cada vez maior número de empresas multinacionais, com atividade em mais do que um país, e ao desenvolvimento de práticas que lhes permitam reduzir ou eliminar a carga fiscal a que são sujeitas, sendo uma das práticas referenciadas a manipulação dos preços de transferência. Neste quadro, o combate à erosão da base tributária e à transferência de lucros tem sido a prioridade da OCDE.
“Normalmente o que tem acontecido é que a OCDE publica relatórios subordinados a várias temáticas, como por exemplo as relativas às reorganizações, financiamentos ou intangíveis difíceis de avaliar num contexto intra-grupo e, passado algum tempo, incorpora essas mesmas recomendações nas suas Orientações sobre Preços de Transferência Aplicáveis às Empresas Multinacionais e Administrações Fiscais”, explica ao JE Paulo Mendonça Tax Partner da EY. Estas orientações são, posteriormente, nas legislações nacionais.
Aliás, prossegue, “em 20 de janeiro do corrente ano foi publicada a última revisão desta publicação. Por vezes, publica também relatórios subordinados a temas específicos, como o relativo aos Preços de Transferência no Âmbito da Pandemia da Covid, que permitem que as empresas e as administrações fiscais adaptem as suas práticas em situações particulares”.
Menos burocracia, mais segurança
Em Portugal, a recente revisão da regulamentação dos acordos prévios sobre os preços de transferência e da regulamentação dos preços de transferência introduzem importantes novidades, tendo em conta as alterações na legislação interna, a experiência adquirida com a aplicação do princípio de plena concorrência e os desenvolvimentos internacionais.
O objetivo da nova legislação era não só o de simplificar as obrigações declarativas que impendem sobre as empresas, mas também conferir maior certeza jurídica aos regimes, alinhando-os com as práticas nos mercados internacionais.
A nova legislação reduz a carga burocrática a que as empresas estavam sujeitas, nomeadamente para as PME, ao aumentar o patamar de rendimentos que as empresas têm que atingir para terem que preparar documentação de preços de transferência de três para dez milhões de euros. “Muitas empresas deixarão de ter de cumprir esta obrigação declarativa”, nota Paulo Mendonça.
A concretização da mudança, apesar de bem-vinda, pelo que tem de positivo, gerou inquietações por parte das empresas, mas também dos especialistas, que percebem a existência de questões a esclarecer. “Verificámos uma reação imediata, acompanhada de algumas inquietações e dúvidas quanto às novas regras. Entende-se este efeito, uma vez que não se verificavam alterações tão disruptivas à matéria dos preços de transferência há muito tempo”, afirma ao JE Pedro Simões Pereira, Tax Director da EY, que acrescenta existirem, questões para clarificar. “Existem ainda alguns aspetos que se podem considerar pendentes de desenvolvimento ou que se consubstanciam em áreas ‘cinzentas’ ou ambíguas”, explicita João Guimarães.
Inspeções e documentação
Entre as áreas consideradas como necessitando de ver questões esclarecidas está a exposição a riscos efetivos de inspeção por parte das entidades de mais reduzida dimensão e qual a documentação que deverá ser entregue às autoridades, caso seja solicitada a demonstração do cumprimento do princípio de plena concorrência em sede de inspeção. A nova legislação exime determinadas entidades de preparar documentação de preços de transferência, tendo em conta a sua dimensão ou as operações em causa, mas reconhece a possibilidade de serem inspecionadas em sede de preços de transferência, pelo que terá de ser explicitado que documentação deverá ser preparada e entregue, neste cenário.
Outro “aspeto relevante que gera incerteza” prende-se com as bases de dados que são habitualmente utilizadas nos estudos de comparabilidade, a que terá de ser dado acesso, “desconhecendo-se, porém, se existe alguma preferência ou hierarquia, por partes das autoridades tributárias, relativamente às bases de dados que deverão ser utilizadas. Do mesmo modo, desconhecem-se os efeitos práticos que poderão decorrer da utilização de bases de dados desconhecidas das autoridades. “Urge esclarecer as regras do jogo relativamente”, diz o especialista da EY.
Além disso, a nova legislação exige que a documentação seja preparada e apresentada tendencialmente em português, mas não especifica em que circunstâncias, através de que meios e em que prazos podem os sujeitos passivos obter as correspondentes dispensas de tradução quando o idioma original é, por exemplo, o inglês.
Outro aspeto, ainda, refere-se à obrigatoriedade de apresentação, por parte dos prestadores de serviços ou assessores, de uma declaração de responsabilidade pela informação e técnicas utilizadas nos estudos efetuados.
“Embora se desconheça o formato exato que esta declaração deverá assumir, a mesma parece apontar para uma maior responsabilização das partes envolvidas na preparação dos correspondentes estudos, o que parece impor uma pressão adicional sobre os sujeitos passivos na seleção adequada dos seus assessores em função da capacidade técnica dos mesmos e da capacidade destes em assumir plena responsabilidade pelos estudos efetuados”, diz João Guimarães. Destaca aqui que desconhece-se, porém, o alcance prático que a norma terá em cenários em que as autoridades tributárias se apresentem em desacordo com o conteúdo e as técnicas utilizadas nos estudos em questão, pelo que “urge o seu esclarecimento atempado”.
Preparação e cautela
Nelson Pereira, Associate Tax Partner da EY aponta ainda que “uma das alterações paradigmáticas da nova legislação foi a revisão dos critérios de dispensa de organização da documentação de preços de transferência. Contudo, há que ressaltar que a anterior legislação é aplicável até aos períodos de tributação que se iniciem em ou após 1 de janeiro de 2020, pelo que as empresas devem seguir as anteriores regras para tais períodos e preparar a documentação de preços de transferência segundo a estrutura anteriormente prevista.
O especialista aconselha as empresas a prepararem-se para possíveis ações inspetivas, através da organização da documentação de acordo com os moldes da anterior legislação, “que não sendo tão detalhada como a atual fornece o enquadramento necessário para as empresas constituírem uma primeira linha de defesa contra o escrutínio da AT”. Seja através da experiência acumulada no decorrer do tempo, seja pela publicação de esclarecimentos, o que é facto é que ainda há arestas a limar.
Por isso, João Guimarães diz que, “embora a nova legislação seja claramente um passo em frente no sentido de conferir uma maior harmonização com as regras internacionais vigentes, existem ainda determinadas questões que suscitam dúvidas e que recomendam cautelas [pelos contribuintes]”.
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