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Novo coronavírus, velho Mundo

Provavelmente nem tudo ficará bem, com as vidas já perdidas não poderemos dizer que vencemos esta guerra, mas poderemos afirmar que sobrevivemos, e isso será bem mais do que uma vitória.
16 Abril 2020, 09h15

“Nós nos protegemos, apenas nós, mais ninguém, nem empresas, nem cientistas, nem governos, apenas nós!”, esta frase da personagem Robert Bilott, interpretada por Mark Ruffalo, no filme “Dark Waters” (2019), é o ponto de partida para as linhas que se seguem, para o bom e para o mau, que o novo coronavírus trouxe a este velho Mundo.

Comecemos por aquilo que deve estar em primeiro lugar. Deve, porque nem sempre está, e por vezes temos de forçar para que seja lá colocado, a saúde, e com esta, a vida.

O ocidente arrancou tarde, a assistir pelas televisões à epidemia chinesa os governos ocidentais menosprezaram-na. Foram muitas as declarações de altos responsáveis governativos negando a potencial dimensão da pandemia.

Portugal mantém-se no top 20 dos países com mais casos registados, e com um número de infetados superior ao de países consideravelmente mais populosos. Apesar de céleres quando comparadas com as de outros Estados, a contemporização inicial na tomada de medidas restritivas, em especial a espera pela posição que Espanha viesse a adotar, em muito contribuíram para o estado atual do combate ao novo coronavírus em Portugal. Sendo certo que não estamos mal, é indubitável que podíamos estar melhor.

Nas últimas semanas o Estado tem feito um forte investimento na saúde, e, apoiado por mecenas do sector privado, empresas e personalidades bem conhecidas de todos, fez duplicar a sua capacidade de resposta nos cuidados de saúde. Duplicar. Num país que ao tempo que escrevo tem mais de 15 000 infetados, dos quais mais de 1000 serão profissionais de saúde, e cerca de 1000 pacientes em internamento hospitalar, sendo o número de óbitos já superior a 400, afirmar que a capacidade instalada duplicou é apenas demonstrativo da sua exiguidade anterior.

Além desta, outras situações têm sido reveladoras dos parcos recursos que os Estados europeus, e não só Portugal, têm para fazer face a tão poderoso adversário.

O uso de máscaras, tido como eficaz em alguns países em que o controlo da pandemia foi realizado com sucesso (tenhamos aqui não apenas o exemplo asiático, mas também o checo), tem sido, por ora, apresentado pela OMS e pelos governos europeus como inócuo. Contudo, essa irrelevância visou apenas ocultar a falta de recursos para proporcionar o seu uso generalizado, pois a falta de preparação para um surto desta dimensão obrigou a priorizar o investimento em meios técnicos mais dispendiosos, e apenas por incapacidade económica e material na produção de máscaras, e na sua disposição massificada à população, se retardou até agora um uso que em breve será recomendado, senão mesmo obrigatório.

A realização de exames é outro dos espelhos onde se revela o poder dos Estados para o combate à ameaça fantasma. As dificuldades na aquisição dos meios para os exames, desde os mais simples, como as zaragatoas, aos mais complexos, como os reagentes e máquinas laboratoriais, demonstram o tamanho do desafio técnico e humano com que o país se depara.

A isto, somamos um Governo que tem sido mais reativo do que proativo. Muitas são intervenções de governantes de proa com afirmações de “vamos aguardar pelas recomendações da OMS”, “vamos seguir as melhores práticas verificadas noutros países”, e enquanto isso, aguardamos, sem revelar qualquer autonomia e iniciativa, desconsiderando os grandes pensadores portugueses nos campos da ciência e da investigação, que muito têm contribuído para o bom desempenho do país até ao presente.

Em Portugal, tal como um pouco por todo o Mundo, a sociedade civil tem-se substituído aos governos no fortalecimento dos meios de combate, de toda a parte têm surgido contributos, desde o simples apelo ao confinamento, mas também através do mecenato, da investigação autónoma e da produção de meios, designadamente, reconvertendo a capacidade produtiva, para a fabricação de dispositivos médicos ou de auxílio ao combate à pandemia.

Entretanto, entre Estados diversos antagonismos nascem. Aviões em trânsito têm a sua carga confiscada, equipamentos vendidos têm o seu destinatário alterado com pagamentos em dinheiro, exportações de produtos médicos são proibidas, leilões são realizados entre fornecedores e Estados compradores, elevando a lei da oferta e da procura ao seu expoente máximo.

As oportunidades de negócio entre Estados, produtores e intermediários tornam-se selváticas, há escoltas armadas para garantir a chegada dos bens aos países de destino, e os serviços de inteligência são chamados a participar nesta guerra, que deveria ser humanitária, mas que tem vindo a ser travada com meios militares.

Neste campo, há que fazer um parênteses meritório e honroso para os Governos Regionais da Madeira e dos Açores. As lideranças governativas dos arquipélagos portugueses, de cores políticas diferentes, adotaram o mesmo comportamento estratégico.

A premissa inicial foi não menosprezar a ameaça e antecipar os meios de defesa, seguida do reconhecimento de que nenhum dos sistemas regionais de saúde tem capacidade para fazer face a um surto em grande escala como aquele que se chegou a avizinhar com a entrada descontrolada de diversos cidadãos infetados nos territórios regionais. O fecho dos aeroportos foi por ambos pedido, e a ambos foi recusado, mas também ambos foram hábeis na adoção de medidas que desencorajassem as viagens às ilhas, até que a República portuguesa, que havia aguardado pela posição da Monarquia espanhola, decidisse o encerramento de fronteiras aos países com maiores focos de contágio.

No reverso da medalha está a economia, colocada em pausa por tempo ainda indeterminado, e a que foram atribuídos os “ventiladores” possíveis na conjuntura atual.

Em Portugal, enquanto se espera que o fluxo de apoios do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional seja colocado em prática, a principal medida de auxílio à economia foi um procedimento simplificado de lay off, que retira um terço de rendimento aos trabalhadores, mas obriga os empregadores a adiantarem o respetivo pagamento até que sejam reembolsados pelo Estado, desconsiderando a falta de liquidez de muitos, aos quais foram apresentadas linhas de crédito para pagamento de salários, cuja eficácia na salvaguarda quer dos postos de trabalho, quer da viabilidade económico-financeira das empresas, é, no mínimo, duvidosa.

Outros campos de grande sensibilidade em tempos de crise económica são o imobiliário e o financeiro. No mercado de arrendamento, quer habitacional, quer não habitacional, a opção legislativa parece ter sido a de fazer parar o deve, deixando o haver para o momento da retoma incerta, tal como o realizado no campo financeiro, com a constituição de moratórias aos créditos a particulares e empresas.

Economicamente, a Madeira debate-se com um duplo isolamento. Prevendo-se, caso o comportamento da população se mantenha, que a vida económica e social da região possa ser retomada entre o fim de maio e início de junho, não será arriscado vaticinar que por essa altura, a normalização do território continental ainda estará longe de ser atingida, e a dos principais mercados do turismo regional, severamente fustigados pela covid-19, casos da Inglaterra, França, Alemanha, e países nórdicos, ainda estará longe da sua recuperação, o que nos remeterá para uma espera indeterminada.

Não será difícil prever uma crise económica severa, a reativação dos mercados será lenta, e muitas empresas não serão capazes de se manter até que o crescimento se faça sentir. O cenário que se assistiu na crise económica e social de 2008-2012 será repetido em maior ou menor escala, insolvências, despedimentos, dívidas bancárias descontroladas, divórcios.

Mas quando a poeira assentar muito de bom poderemos retirar da imagem que a nossa ilha deixa pela forma como tem enfrentado a crise pandémica. A habilidade de se fechar ao exterior mantendo o fornecimento de bens essenciais, em especial alimentares e médicos, o cumprimento das medidas de controlo sanitário pelos cidadãos, e a organização do sistema de saúde, aos quais adicionamos aquilo que a Madeira sempre teve, baixa criminalidade, clima ameno e belezas naturais ímpares, reforçará a atratividade para o investimento externo em dois campos que poderão representar a entrada de divisa externa na economia regional, o das reformas douradas, com reflexo no investimento imobiliário, e o das tecnologias da informação e comunicação, alicerçado na zona franca, e com potencial de manter ativa em período de confinamento uma “Silicon Valley” madeirense.

Provavelmente nem tudo ficará bem, com as vidas já perdidas não poderemos dizer que vencemos esta guerra, mas poderemos afirmar que sobrevivemos, e isso será bem mais do que uma vitória.

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