As guerras são um pouco como as estradas. É fácil fechar uma via rodoviária quando há quedas de pedras, nevões ou outros fenómenos naturais. Difícil é abrir, pois se existir uma tragédia no dia seguinte à reabertura, é o cabo dos trabalhos para os responsáveis. Também na geopolítica, e para quem tem o poder bélico dos Estados Unidos, é fácil iniciar uma guerra e invadir um país. Difícil é, indiscutivelmente, o momento da retirada.
Há mais de década e meia, o grupo português Cool Hipnoise cantava de forma interventiva ao “brother Joe”, personagem principal e título da canção, “Fizeram de ti arma massiva; Herói, invasor, bala perdida; Cruzando os céus p’ra matar; Do outro lado do mar; Em nome da Demo-cracia.”
Lembrei-me deste tema a propósito do novo “brother Joe”, o Biden, que promete ser a desastrada antítese do seu homónimo musical que evocava e criticava a intervenção ocidental no médio-oriente no pós 11 de Setembro.
Mas como tudo tem um contexto, vamos relembrar alguns pontos que me parecem fundamentais.
O (mau) exemplo
O massacre de Simele, perpetrado pelo exército do Reino do Iraque e por forças curdas em 1933, foi uma consequência, digamos, “natural” e inaugurou uma infeliz tradição que esta semana voltou a cumprir-se.
Se o leitor está baralhado, vou procurar ser um pouco mais claro.
Após a instalação do protectorado britânico da Mesopotâmia, logo após a I Grande Guerra e a queda do Império Otomano, a comunidade Assíria daquela zona do globo, maioritariamente cristã, ajudou as autoridades Inglesas a estabelecer-se, gerir o território, e a conter revoltas curdas que eclodiam no Norte. Os Assírios tinham sido vítimas de um massacre anterior, durante a guerra, às mãos do império Otomano e dos curdos. Na esperança de serem contemplados com uma porção de terra no berço da civilização, com algum grau de autonomia, ajudaram as aspirações britânicas, que a um dado momento implicavam a incorporação daquele protectorado (cedido à coroa de forma provisória) no vice-reino da Índia, dita inglesa. O desejo falhou e o Reino Unido não conseguiu conter a proclamação, primeiro, de um reino do Iraque ainda sob o seu domínio, seguido uma década depois pela independência Iraquiana. Estava previsto que a presença militar britânica ainda se faria sentir por alguns anos, mas a súbita antecipação da sua saída provocou, já imaginam, um sucessão de perseguições que redundou num massacre que vitimou cerca de três mil cristãos assírios na cidade Iraquina de Simele e seus arredores.
Já percebeu onde quero chegar, certo?
A tradição consolidada
Mas antes ainda vamos recordar a invasão do Kuwait em 1990, às mãos do exército Iraquiano dominado por Saddam Hussein. Os Estados Unidos reuniram uma coligação de mais de 30 países que rapidamente expulsaram as tropas iraquianos do pequeno emirado do golfo. Mas quando os tanques e as botas do soldados americanos começaram a avançar para norte, já dentro de território Iraquiano, fortemente incentivados por milícias regionais que apelavam à “finalização do trabalho”, ou seja, a deposição do ditador Saddam, antigo aliado norte-americano, surgiu uma voz de comando na sala oval que ordenou o regresso das forças do Tio Sam às bases sauditas de onde tinham partido. Os insurgentes iraquianos sentiram-se isolados e traídos, tendo sido objecto de uma verdadeira “limpeza” sectária nos meses subsequentes.
O paralelo entre as situações atrás descritas e o que se está a passar no Afeganistão é óbvio. O governo, as forças de segurança, a organização dos Estado Afegão pós-2001, e a própria população que, admita-se, essencialmente nos meios urbanos gozava de um estilo de vida em que a realidade religiosa não era sinónimo de cerceamento das liberdades e de atentado aos direitos humanos, viram-se desamparados, abandonados, entregues com requintes de malvadez aos seus antigos algozes, novamente no poder.
A porta de saída
As guerras são um pouco como as estradas. É fácil fechar uma via rodoviária quando há quedas de pedras, nevões ou outros fenómenos naturais. Difícil é abrir, pois se existir uma tragédia no dia seguinte à reabertura, é o cabo dos trabalhos para os responsáveis. Também na geopolítica, e para quem tem o poder bélico dos Estados Unidos, é fácil iniciar uma guerra e invadir um país. Difícil é, indiscutivelmente, o momento da retirada.
Mas nada, absolutamente nada, justifica tomadas de posição vagamente desesperadas, que contribuam para que o status quo regresse ao ponto inicial, o que nem sequer dignifica o sangue derramado por aqueles que caíram em combate.
O papel de Joe Biden, que em pouco mais de meio ano já revogou centenas de “policies” da administração Trump, revela-se particularmente desastroso.
Comecemos pelo seu discurso, no dia em que as tropas talibã entraram no palácio presidencial de Cabul. Uma intervenção tão urgente e atabalhoada como a fuga de diplomatas e pessoal de entidades não governamentais, junto com milhares de Afegãos em pânico, que se atropelavam a caminho do aeroporto, fazendo repetir as imagens tristes e cinéfilas da fuga de Saigão.
O velho Brother Joe, ou alguém por ele, achou que o razoável era atirar-se às forças armadas afegãs, treinadas e financiadas por Washington, à população em geral, e ao ex-presidente Ashraf Ghani por, todos e em conjunto, “não terem tido a vontade de lutar” contra o inimigo extremista. O clássico intemporal de “vamos culpabilizar as vítimas”. Às malvas com a responsabilidade dos Estados Unidos, e do ocidente em geral perante as transformações operadas no país e na região circundante, esqueçam-se os propósitos que levaram originalmente à invasão (é anedótico dizer que retira porque não há qualquer perigo de novo ataque terrorista em solo americano) e que se lixe o sinal perigosíssimo que é lançado para a comunidade internacional.
Acordo unilateral?
Biden agarra-se ao cumprimento de um acordo. “Assinado por Trump”, repete qual marionete de ventríloquo, o vetusto presidente!
É realmente “de loucos” o processo de negociação americana com ex-prisioneiros de Guantanamo exilados e Doha, gentilmente apelidados de “talibãs moderados”, uma óbvia contradição de termos ao jeito de um “black Skinhead”, “machista gay” ou “judeu nazi”.
Uma jogada à Trump que visionava uma América cercada e fechada em si própria, cujo muro tinha a função primeira, não de impedir a entrada, mas antes, de tapar a visão para o mundo circundante.
Biden, surpreendentemente adepto de um “trumpismo sem Trump”, insiste em respeitar um acordo que postulava nas suas premissas o seguinte:
“A coligação completará a retirada das suas forças restantes no Afeganistão dentro de 14 meses após o anúncio desta declaração conjunta ( publicada a 29 de fevereiro de 2020) e do acordo EUA-Talibã … sujeito ao cumprimento pelo Talibã dos seus compromissos sob o acordo EUA-Talibã”, adiantando que “(…) caso ocorra um retorno da violência no país, o processo poderá ser interrompido”.
Em que parte é que os Talibã “moderados” cumpriram o cessar fogo, a rejeição a ganhos territoriais pela força, respeito pelos direitos humanos ou encetaram negociações com as autoridades vigentes e, já agora, eleitas?
Os Talibã … moderados, incumpriram em toda a linha o acordo, mas o patusco Joe considerou indispensável e irrevogável o cumprimento da promessa de saída das forças americanas, único elemento inibidor do regresso à casa de partida!
Além de tudo o que já foi dito e escrito, que legado deixa esta decisão inacreditável?
Sinais de perigo!
Em primeiro lugar o sinal de que os Estados Unidos não revertem, até aprofundam um novel papel de não ingerência internacional. E aqueles que clamam rejeitar o papel de “polícia do mundo” ao nosso parceiro atlântico, cedo perceberão que a posição de força americana no globo era primordialmente um contraponto às ânsias expansionistas de China e Rússia, potências militares que não se inibem de preservar e alargar o seu próprio “espaço vital”. Todo o vazio que os Estados Unidos deixarem será ocupado por outrem. Obviamente menos tolerante, democrático, inclusivo.
O que impedirá a China de invadir a Ilha Formosa e cumprir a reunificação?
De que forma ficará inibida a Rússia de anexar o que falta da Ucrânia, cumprindo subsequentemente o desejo mal disfarçado de um Estado Imperial inspirado no “principado de Kiev” que junte o triângulo Rússia-Bielorrússia e Ucrânia?
Como irá a comunidade internacional fiscalizar e impedir a proliferação de armas nucleares, sem a coação velada estadounidense.
O que travará a vontade bíblica dos vizinhos de Israel de arrasar o Estado Judaico, fazendo-o renascer das cinzas como a grande Palestina àrabe?
E quem deterá Tel Aviv, ou Jerusalém, de recorrer ao poder nuclear que reconhecidamente tem para impedir a sua extinção, sabendo que a primeira segunda e terceira premissa do estado sionista é a sua sobrevivência?
Como irá a Europa garantir a sua segurança, encavalitada que está desde a vitória aliada no tratado de Washington, mantendo simultaneamente o modelo social europeu?
Tempos perigosos os do Brother Joe.
Como dizia a música :” Oh Joe, terra tão estranha”!