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O “burguês” do povo “perdido entre a esquerda e a direita”

Se o povo é quem mais ordena, fomos para a rua. Na tarde do 25 de Abril, desfilámos pela Liberdade na Avenida ao lado de Pedro Marques Lopes, comentador político que se diz perdido ideologicamente. Uma conversa de afetos, confissões e prazeres…
30 Abril 2017, 16h00

O tom parece provocatório, mas não é. A voz forte de Pedro Marques Lopes, 50 anos, soa do outro lado da linha telefónica. “Podemos fazer no 25 de Abril, a desfilar na Avenida da Liberdade”. Dou uma gargalhada, mas ele não desarma. “Estou a falar a sério”, volta à carga. “Sim, se não te importas, parece-me ótimo”, respondo-lhe. “Se não me importo? Não sei se é uma surpresa para ti, mas eu todos os anos participo no desfile do 25 de Abril. Todos os anos. De cravo ao peito e tudo”, explica. A ideia fica logo ali aprovada. Ainda por cima para esta edição, “entalada” entre o 25 de Abril e o 1 de Maio, dois dias históricos e de forte manifestação popular. A conversa telefónica ainda deriva, durante uns minutos, para as dietas e para a perda de peso que ambos conseguimos no último ano. Quase a desligar, volta o tom provocador. “O que era giro era, ainda antes de irmos para a Avenida, bebermos um café no bar do Ritz”, desafia. O contraste é precioso e muito tentador. “É o meu lado burguês”, confessa entre gargalhadas. O burguês do povo, como haveríamos de ver cinco dias mais tarde.

Terça-feira, 14.35. Pedro Marques Lopes chega atrasado cinco minutos. Visivelmente mais magros desde a última vez que nos vimos ao vivo, trocamos galhardetes. “Estou cheio de fome. Vim do ginásio agora e preciso de comer muito rapidamente”, avisa.

Vai andando para o bar, escolhe uma mesa no terraço com vista para os jacarandás. O início de tarde está agradável, embora com nuvens altas. Olho para o relógio e o comentador político percebe a mensagem. “Não te preocupes. O desfile nunca começa às 15h00”, diz com a autoridade de quem é um especialista.

“Desço a Avenida todos os anos de cravo ao peito. O 25 de Abril não é uma coisa de esquerda ou de direita, é transversal. Durante muitos anos houve a tentação de a esquerda puxar para si a efeméride, como se só a esquerda a pudesse sentir. Isso ainda acontece um bocadinho. Mas a culpa também foi da direita, que deixou isso acontecer. O 25 de Abril é a Liberdade. Quem ama a vida e a Democracia tem de amar a Liberdade”, explica.

Esquerda, direita, centro. Afinal, onde se enquadra hoje este homem que há uma década integra o Eixo do Mal, da SIC Notícias, que vem da direita, mas nos últimos anos tem zurzido no PSD e se aproximado mais das posições do PS? Pedro Marques Lopes ri-se com a pergunta: “Eu sempre andei perdido entre a esquerda e a direita. Nunca me revi propriamente num partido.” Hoje, aos 50 anos, diz-se “cada vez mais perdido”. Ri-se e tenta explicar. “Vivemos nos últimos anos momentos muito conturbados. E várias coisas foram colocadas em questão. Nomeadamente do ponto de vista económico. Não me custa rigorosamente nada admitir que eu estava enganado em alguns aspetos da economia. Na questão da regulação, na questão da livre circulação dos capitais. Eu era mais liberal do ponto de vista económico do que sou agora, tenho essa noção. Portanto, do ponto de vista económico sou agora mais conservador, o que em teoria, e por paradoxal que pareça, está mais próximo da esquerda”. Do ponto de vista social, dos direitos dos cidadãos, “estou onde sempre estive”.

À procura do caminho

Pedro Marques Lopes serve-se do resultado da primeira volta das eleições presidenciais francesas do último domingo para explicar por que razão vivemos “num mundo muito diferente”. “Neste momento, estamos numa fase terrível em que temos a esquerda e a direita de um lado e os outros todos do outro. Aquela divisão clássica entre direita e esquerda que havia na Europa, entre a democracia cristã e a social democracia, perdeu-se. Desapareceu, implodiu. E está toda a gente à procura do seu caminho. Eu próprio estou à procura do meu. Não tenho qualquer vergonha de dizer isto: tenho 50 anos e, do ponto de vista ideológico, estou à procura do meu caminho”, diz. Mas foi Pedro Marques Lopes que se aproximou da esquerda ou foi a esquerda clássica que se aproximou da direita? “No meu caso, acho que foram as duas coisas”.

Dá uma dentada no gressino, enquanto espera pelo hamburger de salmão que pediu. Não toca no pão nem na manteiga. Olha em redor, respira fundo. “Isto é muito bonito. Estamos a dois minutos do Marquês de Pombal e não se ouve nada, é muito sossegado”, sussurra. Fala com conhecimento de causa. “Venho aqui muitas vezes, ou para ler, ou para comer qualquer coisa. Vinha aqui mais, porque cortava o cabelo aqui no Ritz. Porque, ao contrário do que vocês, que têm cabelo, pensam, nós os carecas passamos mais tempo no barbeiro, porque isto começa a crescer de lado e tem de ser aparado”, diz, enquanto exemplifica com as mãos.

Volto a olhar para o relógio. São quase três da tarde. “Tem calma, Nuno. Vamos lá chegar a tempo, nunca começa a horas. E se quando lá chegarmos, já tiver começado, vamos a correr, avenida abaixo”, brinca.

Pedro Marques Lopes, que além da SIC Notícias, é comentador residente da TSF, e escreve para A Bola, enquanto adepto do FC Porto, além de outras colaborações na imprensa, diz-se um “privilegiado”. “Sim, eu sei que sou um comentador profissional. Noventa por cento da minha vida é feita assim. Eu vivo disto”. E “isto” dá-lhe uma “enorme liberdade”. “Ninguém é livre se não tiver dinheiro para comer”.

Mas quem é, afinal, este homem que nos entra em casa há dez anos, que intervém na esfera pública de forma tão marcante, mas que entrou de uma forma tão repentina como permanente? “Quem sou eu? Olha, eu sou um merceeiro, filho de merceeiro”, resume. “A minha família é de Braga, mas vim para Lisboa com quatro anos. O meu pai era fundador e principal acionista de várias empresas de distribuição que depois, mais tarde, foram vendidas ao Jerónimo Martins. A minha vida até aos 35 anos foi em empresas, umas vezes com o meu pai, outras sem ele. Trabalhei no Banco Mello, na Maxitel, fui administrador da Casa da Sorte. Portanto, esse é o meu background empresarial. E isso deu-me conforto económico e a tal liberdade de que te falava há pouco”.

Chega, enfim, o hambúrguer de salmão. Pedro é uma máquina faladora. Não para. Mas a terceira olhadela para o relógio faz-lhe soar a campainha. “Bem, vou comer isto num instante para descermos”, diz, a brincar. Ainda há tempo para um café, e para não resistir à tentação. “Quer um pastelinho de nata dos nossos, sôtor?”, pergunta-lhe o funcionário. Que não, responde, que a dieta não deixa. “Ah, eles são tão pequeninos, e quentinhos ninguém resiste”, insiste. Venham! Vieram. Três. “São, de facto, pequeninos”, digo, em jeito de desculpabilização. “É um para cada um”, avisa o funcionário.

A malta animada

São 15h41, quando chegamos ao Marquês de Pombal, depois de descer a pé metade da avenida Joaquim Augusto de Aguiar. A Avenida da Liberdade está cheia. E parada. “Não te disse que isto começava atrasado? Estamos em Portugal. Se fosse o PCP a organizar, já tinha terminado!”, pergunta e ironiza, de uma rajada. “Calma, que ainda tenho de ir ao multibanco”, avisa. Precisa de dinheiro para comprar o cravo. Ofereço-lhe moedas, mas ele recusa. “Não, preciso mesmo de levantar dinheiro”, diz-me, enquanto olha para o balcão do Novo Banco em plena praça. “Será boa ideia?”. Parece que não. Não há caixa multibanco. “Se calhar já foi vendida”, brinca. O Santander mais à frente. “São os espanhóis que nos salvam”, diz, enquanto levanta o dinheiro. Mesmo ao lado, uma senhora vende cravos vermelhos. Olha com curiosidade para o comentador. Talvez o conheça, embora não faça qualquer referência ao facto. “Quando custam?”, pergunta Pedro. “Um euro cada, é baratinho”, responde-lhe a vendedora. “São três”, pede. Paga e oferece dois à equipa de reportagem do Económico. Agora sim, está tudo pronto.

“Isto está cheio de gente. A malta está animada. Olha só lá para baixo”, diz-me, enquanto aponta para o mar que corre até aos Restauradores. “É verdade, mas não tanta gente como da última vez que aqui estive, no ano passado, a festejar o título do Benfica”, respondo-lhe, à laia de provocação. “E este ano voltas outra vez, que já não vamos lá”, diz o conhecido adepto azul e branco, ainda a digerir o empate caseiro com o Feirense, no domingo passado. “Temos errado de mais. É verdade que tem havido arbitragens vergonhosas, mas tem havido muita culpa própria”, reconhece.

Pedro Marques Lopes troca galhardetes com velhos amigos que vai encontrando. “Ora aqui está um tipo de direita que está aqui, que não tem vergonha”, diz-me, depois de se despedir do homem com quem esteve à conversa durante pouco mais de dois minutos.

“A direita sempre teve vergonha do 25 de Abril. Isso sempre me fez muita impressão. Não se misturava com a esquerda, não vinha a estes desfiles. Sempre teve uma grande repulsa em usar o cravo na lapela. Até tivemos um Presidente da República que se recusou a usar cravo nas comemorações oficiais”, diz, numa referência a Cavaco Silva. “Acho incrível. O 25 de Abril foi um ato libertador. Não é uma coisa da esquerda ou da direita. Aqui comemoram-se os meus valores. Porque a liberdade é um valor supremo. E, portanto, eu sempre vim, porque aqui se comemoram valores que para mim são importantes. Independentemente de quem esteja ao meu lado”.

As palavras brotam da boca de Pedro Marques Lopes, enquanto desfilamos lado a lado a Avenida. Vamos em ritmo lento. Lá atrás o grupo da ILGA, com as bandeiras bem no ar. Um pouco mais ao lado, mais numeroso e ruidoso, o Bloco de Esquerda. À nossa frente, o Sindicato dos Professores. Uma voz feminina vai repetindo, de forma quase maquinal, palavras de ordem. “Isto é espantoso. Ela não falha. É preciso ter uma resistência vocal…”, afirma o comentador.

Nos passeios que ladeiam o eixo central da Avenida, há milhares de pessoas paradas a assistir. Como se aquele não fosse um momento para o qual todos estão convidados a participar. “Parece o desfile das marchas, temos público”, ironiza. É da assistência que sai uma senhora e se dirige a nós. Não tem mais de um metro e sessenta e já passou os 60. “Gosto muito de o ver aqui. Gosto muito”, diz. Pedro Marques Lopes, com o cravo entalado entre a gola da camisola azul e a camisa branca, agradece. “Muito obrigado. Mas olhe que venho todos os anos”, riposta. “Pois, gosto muito. E gosto muito do vosso programa”, insiste a mulher.

O “burguês” que nasceu no Porto mas que aos quatro anos já estava em Lisboa é, afinal, um homem do povo. “Não sou um ator de novelas, portanto, naturalmente não sou abordado na rua a cada passo que dou. Mas as pessoas, quando se dirigem a mim, fazem-no com grande simpatia”, confessa. Isso vai-se confirmando ao longo da tarde. Há máquinas fotográficas que disparam, há telemóveis que se apontam. “Olha quem é ele!”, exclama um homem, que lhe tira uma foto. “Então o Daniel Oliveira? Vem lá atrás, no Bloco de Esquerda?”, pergunta. Pedro Marques Lopes sorri e diz que sim. “Coitado do Daniel, ele já nem é do Bloco de Esquerda!”, comenta para mim, divertido.

“Você por aqui? Não estava nada à espera de o ver por aqui”, pergunta-lhe outra cidadã. O comentador do Eixo do Mal repete-lhe a mesma história. “Ai, não sabia. Isso merece uma selfie. Podemos tirar uma selfie?”, pergunta, preparando o tablet mesmo antes de ouvir a resposta. Que sim, venha de lá essa foto.

“Há pessoas que parecem surpreendidas por te ver aqui”, digo-lhe. “Não percebo porquê. Como já disse, o 25 de Abril não é da esquerda nem da direita. Além disso, eu não me importo nada de estar junto a outras pessoas com quem não estou habitualmente se a causa em questão me unir a essas pessoas. Nada, zero”, diz. E exemplifica: “Já participei em movimentos com pessoas que não têm os mesmos valores que eu defendo. Olha, foi o que acontece no referendo ao aborto ou na campanha pela legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo”.

A voz de José Afonso ecoa agora pela Avenida. O Grândola Vila Morena é entoado por todos. Também por Pedro Marques Lopes, à medida que chegamos aos Restauradores. A população amontoa-se e nós desviamos para o passeio para poder continuar a conversar. Pedro fala do seu amor maior, os três filhos, já crescidos: Marta, Domingos e Sebastião. “Tudo muda quando somos pais. Deixaste de estar sozinho, sabes que estás no mundo por causa deles e por eles, independentemente do caminho que levarem”, afirma, ao mesmo tempo que deixa escapar o desejo de ser avô. “Ser avô é um ato um bocado egoísta, reconheço. Quem tem o trabalho são os pais, mas nós podemos aproveitar o lado bom”, brinca.

Já passam das cinco da tarde. Está na hora de regressar. Seguimos caminhos opostos. Ambos a pé. Nada que, aliás, não estejamos habituados. “Corro oito a dez quilómetros por dia, cinco vezes por semana”, conta, deixando, contudo, escapar uma frustração: “Este esforço físico às vezes é inglório, porque não se emagrece mais. Corres oito quilómetros, perdes 800 calorias, mas depois chegas a casa e é o Diabo”, brinca. “Agora tenho o frigorífico mais vigiado, mas sou muito petisqueiro. Chouriço, queijos, presunto. Adoro!”. A dieta que o fez perder 15 quilos no último ano, e que mudou a sua fisionomia televisiva e melhorou a sua saúde, obrigou-o a regrar os seus hábitos e a aprender a cozinhar. “Eu não fazia nada em casa, mas tive de me habituar quando comecei a viver sozinho, depois de me separar. Aprendi a fazer uns arrozes, umas saladas e até a simplicidade de um peixe no forno, envolto numa prata. É delicioso”.

Acabamos a falar de comida. “Tinha de ser. Nós não somos assim por causa do ar, pois não?”, pergunta em jeito de despedida.

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