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As afinidades electivas do Coronavírus

“O coronavírus não gosta de teatro, nem de espectáculos, nem da cultura em geral”. E mais: tem dois pesos e duas medidas – não ataca em aviões mas é perigoso nos teatros; não ataca nos comboios mas infecta os mesmos trabalhadores que neles se deslocam – mas só nos tempos de descanso no seu local de trabalho! E suspeita-se que não atacará também em alguns eventos públicos municipais que beneficiarão da maior fatia dos 30 milhões de apoio governamental para a cultura (em detrimento de outros programas para a cultura, quando este sector precisa urgentemente de apoio!), mas já noutros encontros e festivais culturais … pondere-se bem, é bem provável que a sua virulência seja acentuada.
2 Junho 2020, 07h15

Perante as últimas notícias de desconfinamento é inevitável não se indignar com a selectividade que as instituições de saúde (ou as entidades detentoras do “grande capital”?…) atribuem ao vírus da Covid. Ora, ao que se percebe este vírus não investe ninguém se se estiver dentro dos aviões, mas no teatro já não é assim, daí que os critérios de inclusão/exclusão da mesma população pareçam distintos no âmbito da actual pandemia. Se bem se percebe, se se decidir ir com o habitual grupo de 10 amigos ao teatro tem que se assegurar uma distância física de segurança  entre cada pessoa (e bastará intercalar um assento entre cada espectador), por causa do SARS-CoV 2. Mas se os mesmos amigos decidirem ir de viagem conjuntamente, é garantido que o vírus não os atacará mesmo que se sentem ao lado uns dos outros, sem qualquer requisito de distância mínima. De acordo com as recomendações das autoridades de saúde (bem coincidentes – ou articuladas?) – com as entidades europeias responsáveis pela aviação, a argumentação assenta no facto de que no avião todos, com máscara, “olhamos em frente” e, acrescento eu, nem tocamos em nada, nem assentos, nem apoios cotovelares, nem bagageiras… E é claro que no teatro ou no cinema o nosso foco principal de atenção e visão costuma ser lateral…

Até aqui recorreu-se ao exemplo da aviação mas os mesmos argumentos devem servir às empresas de viação rodoviária, ou a esta altura nem a CP, nem a Carris, nem o Metro, nem a Horários do Funchal, entre outras, estariam tão lotados por estes tempos e ninguém se apercebeu de terem entretanto aumentado as carruagens ou carreiras para responder à demanda da saúde pública.

Mas eis que o mesmo vírus se comporta de forma diferente nas empresas (sobretudo quando os trabalhadores relaxam e páram para tomar café ou almoçar – foi o que concluiu a tutela de saúde recentemente: os mesmos trabalhadores que usam os tais transportes lotados para ir trabalhar; os mesmos trabalhadores a quem muitas vezes não é facultado o material de protecção nem são contemplados por uma adequado plano de contingência (e não se pense que isto só acontece nos serviços privados; nos serviços públicos sob a tutela dos que exigem medidas de precaução e segurança aos privados, a carência de circuitos e material de desinfecção e protecção não foram providenciados a tempo do retorno dos trabalhadores em vários serviços públicos…).

E que dizer dos teatros e demais salas de espectáculo? Mesmo que a “generosidade” das últimas alterações comunicadas pelo Ministério da Cultura, a conclusão só poderá recair no seguinte: para a aviação, lotação esgotada; para os teatros lotação a “meio gás”, ou seja: para uns medidas “draconianas” para outros a compassividade.

E a atentar nas restrições e exigências que se fizeram para a reabertura de salas de espectáculo (como as devidas disposições higiosanitárias, que implicam mais despesas para menos receitas para os agentes culturais e artísticos) é de propor a uma revista científica com elevado factor de impacto que estude a impressionante selectividade ou especificidade do vírus – porque se não é ainda concludente, ao menos suspeita-se da hipótese: “O coronavírus não gosta de teatro, nem de espectáculos, nem da cultura em geral”. E mais: tem dois pesos e duas medidas – não ataca em aviões mas é perigoso nos teatros; não ataca nos comboios mas infecta os mesmos trabalhadores que neles se deslocam – mas só nos tempos de descanso no seu local de trabalho! E suspeita-se que não atacará também em alguns eventos públicos municipais que beneficiarão da maior fatia dos 30 milhões de apoio governamental para a cultura (em detrimento de outros programas para a cultura, quando este sector precisa urgentemente de apoio!), mas já noutros encontros e festivais culturais … pondere-se bem, é bem provável que a sua virulência seja acentuada.
Certo, certo, parece-me, é que os epidemiologistas e virologistas têm nesta afinidade electiva do vírus um mote de trabalho estimulante e inspirador. Maior sensação microbiológica não haverá brevemente na ciência…
( Nota explicativa em caso de dubiez: este texto foi escrito ao abrigo da figura de estilo “Ironia”)

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