Com o avanço do programa de vacinação em Portugal, o regresso da normalidade começa a surgir no horizonte com contornos mais definidos. E que normalidade é essa que nos espera após o verão, já atingida a imunidade de grupo? Retirámos alguma lição enquanto coletivo desta pandemia? Será sensato esperar que setores que foram forçados a uma paragem ou atividade mínima durante um ano consigam voltar a realizar contratações?
As linhas de crédito destinadas ao apoio e retoma económica chegaram muito tarde durante a pandemia e continuam com execuções lentas, embora tenham sido vitais para evitar um colapso massivo. Sobreviver vai continuar a ser a palavra de ordem para muitos nos próximos anos.
No entanto, a julgar pelas palavras da secretária de Estado do Turismo, Rita Marques, na sua entrevista mais recente ao “Público”, o objetivo é transformar novamente Portugal no farol de múltiplos eventos internacionais. Em nenhum momento da entrevista se pergunta quais as salvaguardas a tomar face a futuros eventos que possam de novo condicionar a circulação de pessoas. Insistimos em ignorar o futuro próximo minado por alterações climáticas ou outras circunstâncias extraordinárias que poderão condicionar substancialmente a nossa capacidade de circular no território ou nas cidades.
E se o futuro é ignorado, o passado mais parece ter sido apagado. Os vários planos de recuperação económica são vagos perante a miríade de problemas que enfrentávamos antes da chegada do vírus. Já ninguém se lembra da crise de habitação desencadeada pela especulação imobiliária desregulada, da subida generalizada do custo de vida, da estagnação dos salários ou de muitos jovens sub-25 enfrentarem condições de precariedade como nenhuma outra geração antes enfrentou, tornando praticamente impossível para um jovem casal a aquisição de uma casa sem depender do apoio dos pais ou familiares?
Aliás, a crise de habitação começa a ser transversal a muitas áreas do país com a população local a ser empurrada para zonas cada vez mais inacessíveis enquanto as zonas mais privilegiadas estão a ser transformadas e modernizadas para dar lugar a quem tem poder de compra. O cerco aperta-se em torno da classe média, ao mesmo tempo que esta se polariza entre empregos bem pagos e altamente qualificados e empregos mal pagos e em risco de desaparecimento. Teremos a crise de automação a bater à porta em poucos anos.
Muitos estão fartos das injustiças do capitalismo, impossibilitados de aceder à igualdade de oportunidades. Nada disto é novo e nada disto desapareceu com Covid-19, antes pelo contrário.
A somar a tudo isto, acrescentaria também a falta de visão que tem prejudicado o país, demonstrando sermos incapazes de ir para lá de uma abordagem economicista e tecnocrata. O perigo desta falta de visão é deixar-nos impreparados para o futuro que aí vem. Ora, não temos de continuar presos a modelos ultrapassados só porque os nossos governantes assim o escolhem.
À medida que o custo de viver se agrava e a instabilidade climática aumenta, não temos outra escolha senão repensar modelos mais sustentáveis que não sejam cegos à realidade que enfrentamos.