A pandemia da Covid-19 levou ao encerramento das escolas em todo o país e trouxe a necessidade de flexibilizar o ensino à distância, com o regresso da “telescola”. Embora se trate de uma situação excecional, há pais que querem que as aulas virtuais se mantenham mesmo quando as escolas reabrirem. Mas podem as ferramentas digitais substituir as aulas presenciais? Deve o uso de tecnologia ser massificado no ensino? Os professores e sociólogos contactados pelo JE pedem cautela e dizem que o recurso à tecnologia deve andar de braço dado com o ensino de valores éticos e humanistas aos alunos.
Santana Castilho, professor universitário, ex-subsecretário de Estado dos Assuntos Pedagógicos no governo de Francisco Pinto Balsemão e antigo consultor do Banco Mundial, da União Europeia e da Unesco, defende que “o ensino presencial é insubstituível” por aulas através do computador, mas admite que pode ser uma boa solução enquanto elemento extra na aprendizagem. “Se os conteúdos digitais forem de boa qualidade, sem erros científicos, metodológicos ou pedagógicos, podem funcionar perfeitamente como complemento”, diz, comparando-os às explicações a que vários alunos recorrem para consolidar ou rever conhecimentos.
O pedagogo alerta, no entanto, para a necessidade de não tornar os alunos “escravos das tecnologias”. Isto porque, segundo Santana Castilho, devem ser “evitados exageros não ponderados na introdução de meios e materiais” de ensino digitais sob pena de se correr o sério risco de estarmos a “criar o Homem sem humanidade”. O ex-subsecretário de Estado explica que a necessidade de educar os alunos para a dimensão ética é “o corolário” da introdução crescente de tecnologias no sistema de ensino. “Para se poder ensinar os valores éticos e humanistas é preciso viver de acordo com eles. É algo que só pode ser transmitido através da demonstração pelo exemplo “, sustenta o professor.
Mas o que explica que a ética ganhe uma dimensão de relevo em tempos de ensino virtual? O escritor George Orwell alertava, em meados do século passado, para os riscos de uma sociedade controlada pela tecnologia: “o reinado da Máquina, que tudo faz, tudo resolve e tudo prevê e em que o homem é dispensado de pensar”, sendo “nada mais do que uma das peças da gigantesca Máquina”. Partindo destas palavras, o filósofo André Barata diz que o progresso científico e tecnológico vem com “uma promessa de extensão do poder” e que, à medida que vamos avançando em termos tecnológicos “vamos alienando capacidades”, como a memória e raciocínio. “Alienamos memória, porque a memória exterior é superior à nossa, e conhecimento, porque só precisamos de saber onde está”, explica.
André Barata sublinha que a par disso surgem outras questões como a perda de individualidade e de valores éticos. “Embora nos seja apresentada como algo que vai melhorar a nossa condição de vida, a técnica e a tecnologia tornam-nos mais reféns de um modelo de produção em que se perde a relação e a preocupação com os outros sujeitos e com nós próprios”, diz.
Num esforço para combater isso, o filósofo considera que a escola tem um papel essencial na sensibilização para os conceitos de ética e humanismo. André Barata diz que a tecnologia pressupõe sempre um “imperativo ético” de dar-se o back to basics, ou seja, alertar para a importância de não esquecer o essencial: “crescer com os outros” e garantir que há sempre um encontro de opiniões, discussão e debate para não se perder o sentido crítico e não nos tornarmos nem condenarmos os alunos a serem apenas “células de um grande organismo tecnológico”.
Ética em tempos de pandemia
Com os alunos em confinamento, a socióloga Susana Cruz Martins, com especialização na área da educação, teme que a dimensão ética tenha sido anulada temporariamente pela imposição das aulas virtuais e do ensino à distância, com recurso a ferramentas como o Zoom, Skype, Microsoft Teams ou Messenger Rooms. “O ensino presencial potencia a participação e envolvimento dos alunos na comunidade. Até aqui as escolas vinham a definir partes do currículo para alertar para questões cívicas consoante o contexto educativo. O ensino a distância quebra essa questão”, indica a socióloga.
Susana Cruz Martins entende que a escola e a educação podem ser “uma boa ferramenta para inibir algumas das consequências negativas” do uso crescente da tecnologia. Para isso, a escola deve procurar compensar os alunos com mais atividades de formação cívica que “despertem a participação política e intervenção na comunidade”. A flexibilização dos currículos escolares é, neste contexto, um elemento crucial para que os professores possam adaptar as aulas às questões e problemas que existem na comunidade, como a discriminação racial ou o consumo de drogas.
A socióloga diz ainda que cabe também às escolas alertar que, embora nos últimos anos se tenha assistido à substituição do homem pela máquina em vários setores da sociedade, nada substitui as relações humanas. Susana Cruz Martins nota que, além da aprendizagem escolar, o contacto com os outros (que exprimem reações que nos permitem distingir o que é bom e o que é mau; o que é certo e o que é errado), é essencial na formação do indivíduo enquanto pessoa e membro da comunidade.
Santana Castilho alerta que as políticas de educação que têm sido adotadas nos últimos anos pelos sucessivos governos “têm sido desumanizadoras”, ao dar demasiado destaque às tecnologias ao invés do contacto presencial. Diz ainda que essa situação foi agravada com a declaração de estado de emergência e a imposição da telescola, agora designada de #EstudoEmCasa, para alunos do 1.º ao 9.º ano. “Quando terminar a telescola vai dar-se um ressurgimento da necessidade de contacto físico entre professores e alunos. Esse é insubstituível”, diz.
O professor diz ainda que os vários estudos que foram feitos sobre a introdução de ferramentas digitais no ensino mostra que “a substituição dos manuais em papel pelos manuais digitais” em “idades precoces”, até aos oito anos, tem “efeitos desastrosos”, quer a nível oftalmológico quer dos mecanismos de aprendizagem. “A tecnologia, se for entendida como ferramenta, é bem-vinda; não como substituto da presença humana. Isso é desumanizador”, sublinha Santana Castilho.
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